15.7.19

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Foto: Guy - StockSnap

 

A dor escondida, por se ter perdido alguém na vida, é sempre a mais profunda, a mais dolorosa e a que mais nos consome. Quando persiste e se torna irreversível, vai-nos corroendo por dentro e por fora, traçando um penoso e longo caminho de suplício em que são predominantes a amargura e o sofrimento. É um sofrimento atroz que mina o corpo e a alma e que só poderá encontrar algum alívio no mundo dos afetos.

Nesse mundo de afeição, carinho e ternura, observando o que nos rodeia e percebendo então quem necessita de nós, será possível, mediante uma partilha de afetos, mitigar o sofrimento ou, até mesmo, transformar a dor em algo sublime para a vida, abraçando, por exemplo, uma causa social no exercício de uma atividade cívica, o que poderá constituir até uma forma de realização pessoal.

A dedicação e a disponibilidade para com os outros, tentando ir sempre mais além do que seria comum na dádiva dos afetos, poderão contribuir, como iluminação do interior do nosso ser, para suavizar o próprio sofrimento.

O desperdício da vida está naquilo que não damos e que, na maioria das vezes, está perfeitamente ao nosso alcance para podermos dar, ou seja, dar mais de nós, quer mediante ações de índole social, quer no âmbito de relações afetuosas e fraternas.

Na vida, a dor é, muitas vezes inevitável, mas é possível diminuí-la através de um simples dar e receber, numa relação de troca de afetos.

 

José Azevedo

 

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8.7.19

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Foto: Despair - Gerd Altmann

 

Quando vi este tema, disse: ui… é muito difícil escrever sobre dor! Porque será que pensei assim? Vejo a dor de diversos ângulos. As “minhas dores”, as “dores dos outros”, as “dores dos outros” que são também as “minhas dores”, e as “minhas dores” que são também as “dores dos outros”. Depois pensei: mas em que dores estou eu a pensar? Começo, assim, a entrar num campo muito amplo e complexo. Antes de mais, estamos a mover-nos no campo da subjetividade.

 

Qualquer tipo de dor é subjetivo, mas na vida temos a pretensão de pensar que a “minha dor” é sempre maior que a “dor dos outros”. Como a medimos? Que dor medimos? A dor fisiológica é considerada o 5º sinal vital e mensurável com escalas. Eliminar a dor fisiológica é um dos objetivos primordiais dos profissionais de saúde. Muito bem! Ninguém deve sofrer de dor; não é admissível nos tempos que vamos vivendo. Mas volto à questão inicial que me moveu para este campo da subjetividade: em que dores estou eu a pensar? Pois, pensar em dor leva-nos a pensar em campos escorregadios. Há um tipo de sentimento que dificilmente se explica, que eu, arriscadamente, denomino de “dor mental”. Essa não advém de lesão, mas é tão difícil de suportar! Tentamos explicar o que se sente e parece que só nós a podemos gerir. Não há analgésico que nos valha. Não há escalas que a meçam. Mas ela está lá, num sítio que também não sabemos apontar. Aparece como? Disfunção neurofisiológica? A justificação está sempre na neurofisiologia? Os neurotransmissores são sempre os responsáveis? A neurofisiologia ajuda-nos a perceber muita coisa, mas será que explica todo o tipo de “dor mental”. Se alguém me ajudar a denominar este tipo de sentimento de outra forma, agradeço! Eu sei que ela existe.

 

Volto ao início: estas “minhas dores” são também as “dores dos outros” e estas “dores dos outros” são também as “minhas dores”? São minhas e dos outros, se forem compreendidas! Entro no paradigma da compreensão para qualquer tipo de dor, o qual permite perceber como a pessoa vivencia as experiências e abandono o paradigma da explicação de natureza causal e mecanicista. Arrisco dizer que, no que diz respeito à compreensão da dor, ainda há um caminho muito longo a percorrer. Desculpem aqueles que compreendem todas as dores e que tudo e o melhor fazem para as aliviar. A estes, um grande bem-haja!

 

Ermelinda Macedo

 

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5.7.19

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Foto: Business - Public Domain Pictures

 

Estava um lindo dia de sol, com todas as flores a abrirem coloridas com a chegada da primavera, após longos dias de chuva. As gargalhadas e cantorias dos mais novos eram como melodia que encantava. Os serões a dois, até altas horas, eram a cereja no topo do bolo após longos dias de trabalho a fazer aquilo que se gosta, desta vez rentável, finalmente.

O correio chegou, e com ele a notícia de que o paraíso é só mesmo no céu. A revolta e a dor no peito invadiram o corpo e até agora teimam em não sair. A revolta mistura-se com angústia, com frustração, com vergonha.

A dor, essa, não se mistura com nada, mantém-se ali firme, para relembrar que os dias perfeitos são passageiros ou meras ilusões. Sentir que tudo se fez e se faz para que corra bem, sem magoar ninguém, em palavras ou ações, não vale de nada!

O coração está despedaçado e não é por nenhum desgosto de amor. Ou será?

Com esta dor, o amor próprio não existe. Apetece-me por fim a tudo. Não sei se aguento mais esta queda. Não agora, que parecia estar tudo a correr bem.

Porque me enganas, dor?

Porque sais da minha vida e voltas com todas as forças que tens e me destróis, agora por dentro e por fora?

 

Sónia Abrantes

 

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1.7.19

Girl - Jerzy Górecki.jpg

Foto: Girl - Jerzy Górecki

 

“Mas de que vale a vida se não é sentida

Mesmo que assim seja preciso

Que a dor nos vá matando devagar”

Ana Bacalhau & Diogo Piçarra – “O erro mais bonito”

 

É assim a vida. Um misto de alegria e dor, nem sempre em doses equilibradas.

É o passado que não volta e ainda se revê no presente.

É o pico de felicidade extinto que não teve a desejada continuidade.

São as ausências daqueles que tanto se queria e não mais retornarão.

As esperanças frustradas e os sonhos aniquilados…

Mas de que valeria a vida se não fosse efetivamente vivida e sentida? Que histórias existiram para contar? Pois se tudo faz parte, se tudo é caminho!...

 

Sara Silva

 

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28.6.19

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Foto: Spacer - Julita

 

A Dona Honestidade encontrou, um certo acaso, a Menina Imaginação - Sãozinha, para os que a conheciam de berço e de afeto. Havia muito tempo que não se viam e ela tinha crescido - por isso a D. Honestidade abriu muito os olhos, entre admirada e certificadora da verdade; em reconhecimento, enfim, que o tempo, às vezes, faz gato-sapato da memória de gente... bem, digamos, antiga. De certa idade. Velhota. Mas, sim, era mesmo a menina Sãozinha, aquela jovem alta, de porte altivo (sempre a conhecera com a cabeça nas nuvens, mas não tão literalmente...), vestida com roupas audaciosamente espampanantes, cheias de folhos, cores, laços e rendinhas de todos os graus de delicadeza.

 

- Sãozinha!!... Como é possível? Nem te reconhecia, estás tão crescida!

- Imaginação, se faz favor. Sãozinha é um diminutivo carinhoso que, em pequena, até me ficava bem. Mas agora, D. Honestidade, julgo inadequado. Cresci, sim, conquistei o mundo, sou muito importante, bem-sucedida, tenho o mundo a meus pés – disse a jovem, de nariz bem empinado.

- Ah. Sim. E a cabeça nas nuvens. – retrucou a respeitosa senhora, rindo sem maldade, apenas franqueza. – Então, conta, como conseguiste tanto sucesso?...

- Vendo Felicidade.

- Vendes Felicidade? Mas isso é lá coisa que se venda?! Aliás, Felicidade nem sequer existe!

- Ai, que mania, D. Honestidade! “Vendo” de ver, valham-me todas as virtudes. VEJO felicidade em tudo que existe, invento mundos meus, pinto a manta, uso óculos cor-de-rosa, quando é preciso, ou azuis, ou amarelos, ou cor-de-gato-a-fugir, conforme a necessidade. Vejo e tento fazer ver aos outros.

Aí, a D. Honestidade franziu as rugas todas.

- Mas isso é fingimento, é ilusão, pode até raiar a desonestidade!

- Desonestidade, não! Uso a fantasia, sim, não nego, a meu favor e a favor dos outros. Tento poupar as pessoas da crueza da verdade, às vezes, sim. Há quem me chame mentirosa, mas, esses, acreditam que Felicidade é Verdade. Não é. Felicidade é um lugar que eu crio dentro do mundo, dentro de um Momento. É a força dentro da Coragem. É o êxtase dentro da Alegria. É a humildade dentro da Gratidão. É o cuidado, dentro da Verdade. É a fuga, dentro do Sonho... enfim, é o jardim que a D. Honestidade tem atrás de sua casa, sem saber.

- Que jardim, menina?! Olha!... Logo eu, que trabalho de sol a sol, para ganhar o pão-de-cada-dia… tenho lá tempo para plantar flores!

- Plantou sim, um belo jardim, com as sementes que traz dos caminhos que calcorreia. Só que sou eu que o cuido, que o rego, que o mondo, que o podo e vou alindando, com pedrinhas de longe, e tesouros de perto: raios de sol, orvalho, chilreios de passarinhos, crianças brincando, borboletas, abelhinhas, enfim, coisinhas simples que tenho à mão.

- Ai, Sãozi…. Quer dizer, Imaginação: eu cá tenho os pés na terra, mas olho a direito, rege-me a verticalidade, a honradez, a verdade… e orgulho-me disso. Mas… bem, não me custa nada baixar os olhos e reconhecer em ti a honestidade das coisas belas e necessárias. Sim, sei do tal jardim. E apesar de nunca me ter dado a liberdade de lhe reconhecer os encantos, não penses tu que vou por aí pisando as margaridinhas – foi dizendo a honorável senhora, entre o ataque e a rendição, acabando num fio de voz límpida e macia.

- Oh, D. Honestidade… - acudiu, de mãos estendidas, a jovem Imaginação. – Eu sei, eu sei disso. Seria contra a sua nobre natureza não abrigar em si um pouco de condescendência pela fantasia, pela beleza, pela arte. E alguma fé no poder do sonho. E um natural carinho por mim que, afinal, conhece desde pequenina. Eu cresci consigo, sabe, tão ao seu lado que nem deu pela minha falta.

E, sorrindo, acrescentou:

- Imagine se desse…. Eu teria muita pena, honestamente.

 

Teresa Teixeira

 

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24.6.19

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Foto: Freedom of speech - OpenClipart-Vectors

 

“Não fui eu, pai! Já estava partido!”, “As notas ainda não saíram…” ou a ignorante convicção que se poderia escapar com uma mentira. É certo que os tempos eram outros (como pareço um velho) e os modelos parentais eram diferentes, mas na minha infância (e na maioria da dos meus amigos) a (des)honestidade encostava-se, frequentemente, no medo. Medo da estalada, da colher de pau ou, na melhor das hipóteses, do simples castigo que nos levava a pensar (muito para dentro) “safei-me desta”.

Não discuto se tais modelos parentais mais “rigorosos” ou “físicos” eram melhores ou piores. Como talvez tudo na existência das coisas, existem lados positivos e lados negativos. Salve-se o equilíbrio. Bem, certo é que isto mudou. Observando a comunicação humana próxima da minha realidade, considero que estamos menos honestos. Atualmente somos aliciados diariamente com o “politicamente correto”, não atendendo contudo ao facto de que não houve (nem seria possível haver) uma evolução tão rápida no pensamento individual e por consequência à escala social, que acompanhasse esta “tendência” tão recente. No suposto tempo da liberdade, dignidade, reconhecimento, expressão, diferença, igualdade, inclusão, diversidade, aceitação, reparação, compensação, migração, multiculturalidade, direitos e sei lá mais o quê, na verdade pouco se aceita o pensamento / expressão que diverge da visão em túnel do que deve ser dito ou pensado, logo o que DEVE SER.

 

Ressalva muito importante: nenhum extremismo (mas extremismo mesmo – não daquele tipo “fiquei tão ofendido” e de qualquer espécie) deve ser tolerado!

Contudo, cada vez mais se aceita e estimula uma “honestidade” em linha com ideias supostamente “avançadas culturalmente” ou vendidas noutro embrulho qualquer. No fundo, clichés (porque carecem de autocrítica) que são expostos, quando na verdade pouco tempo gastamos em confrontar o que dizemos com o que pensamos entre as paredes do nosso crânio.

Quanto internamente honestos somos em relação às minorias étnicas e religiosas, ao conceito de “apropriação cultural”, à migração, à “linguagem inclusiva” (aquela que em vez de se escrever todos, escreve-se todos e todas, ou pior tod@s), à política de direita, aos “subsídio-dependentes”, à utilização de certas drogas ou utilização de algumas expressões (mal) identificativas da raça, do género ou orientação sexual? Quantas vezes defendemos um determinado ideal, uma determinada pessoa, uma determinada opinião, um determinado acontecimento, para depois, pouco mais tarde, nos rirmos de uma piada qua ataca o que acabamos de defender? Ou quantas vezes mudamos o norte se o acontecimento em causa nos tocou pessoalmente?

Continuamos a jogar com o medo… Medo que descubram o que realmente está por dentro e que não pode ser mostrado para fora. E assim estamos a ser desonestos. Primariamente connosco e depois com os outros e com o mundo. E se às vezes, por isso mesmo, e por pensarmos “o que não deveria ser pensado”, mereceríamos uma chapada bem dada, noutras vezes deveria ser-nos permitido dizer com honestidade o que acreditamos, sem sermos rotulados da mesma forma depreciativa e limitadora da liberdade individual.

 

Rui Duarte

 

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17.6.19

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Foto: People - StockSnap

 

Gostava de poder dizer tudo o que sinto, tudo o que penso, sem filtros. Não sobre os outros, sei ser desumano sequer pensá-lo, mas sobre mim. Gostava de poder falar sobre o que me vai cá dentro sem ter de me preocupar com o impacto que isso pode ter nos outros, ou ter de esmiuçar cada uma das minhas emoções para que lhes “faça sentido” – jamais fará. Aos poucos, e ao longo de demasiado tempo, fui ficando mais em mim, num espaço onde não há respostas, mas existem mil perguntas que me afastam da presença física dos outros. É um caminho perigoso e sedutor, traz armadilhas que invalidam tudo o resto daquilo a que chamamos vida. Sobretudo, vida com.

Pensava que a idade e a experiência me dotariam da capacidade de entender melhor este e outros fenómenos que têm que ver com a nossa relação com os outros, com as emoções e os sentimentos, mas, na verdade, a coisa agudizou-se: algumas caraterísticas tornaram-se intoleráveis, percebi que há gente com quem nunca me vou cruzar, que há situações que jamais poderei resolver, que não estou mais serena ou mais confiante. Parte de mim insiste em acreditar na raça humana, outra parte desconhece o seu próprio lugar num universo de gente com a qual não me identifico nem um bocadinho…

A honestidade não faz parte do cardápio de um grande número de pessoas. Atualmente, parece que todos têm apenas um valor utilitário, desprovidos de sentimentos e afetos que nos levem a respeitar os demais. Deixa-me triste perceber que a mediocridade parece ser a medida de todas as coisas. Não sei existir num mundo onde todos têm um preço, num mundo onde um carro é venerado e as pessoas dispensáveis, onde nos sentamos a jantar com amigos que passam o tempo agarrados ao telemóvel em vez de nos olharem nos olhos. Não sei caminhar num tempo feito de mentiras, violência e ausência de respeito. Ao fim de tantos anos, percebo que a única coisa que sempre pedi a quem comigo vive é, afinal, a mais rara das condições. A honestidade tem um preço elevadíssimo e poucos são os que a conseguem exibir.

 

Gostava muito de não perder a capacidade de acreditar, mas temo não ser capaz de o fazer muito mais tempo. Na verdade, as pessoas dizem todas a mesma coisa: umas, porque o sentem genuinamente; outras, porque aprenderam que parte do jogo é mentir, dizendo o que parece mais correto, sem sentir coisa nenhuma daquilo que deitam pela boca fora. É preciso tempo para perceber a diferença e poucos são os que conseguem esperar. Lançam-se de cabeça, mas com reservas no coração e depois esperam que tudo corra bem.

Quando é que desaprendemos a honestidade? Quando é que decidimos ser carrascos dos outros e os nomeamos responsáveis pela nossa felicidade, pelo nosso equilíbrio, pela nossa existência? Quando é que o comum mortal decidiu passar pela vida, hipotecando tudo aquilo que é importante e que valida a condição humana? Em face de tudo isto, vou-me calando, vou-me isolando. Cada vez falo menos de mim ou do que sinto, cada vez me dou menos aos outros. Já não tenho a capacidade de estar com quem é mesquinho, cruel ou oportunista.

No trabalho, infelizmente, temos de lidar com todo o género de gente, mas, na minha vida privada, não há espaço para a toxicidade dos outros. Considero que têm tanto direito a existir quanto eu, mas não lhes permito gravitar ao meu redor. Devo essa honestidade a mim própria. Na realidade, estou cansada de tanta desilusão, de tanta maldade no mundo que não tenho como explicar. Deixei de ter expetativas, não espero nada dos outros e por isso vou-me poupando ao sofrimento que já senti na pele, intensamente. Aquilo que mais me feriu até hoje, foi esperar a reciprocidade dos meus. Precisei de todo este tempo para aceitar que quem vive em torno do seu umbigo, jamais conhecerá essa reciprocidade. Não é possível ser-se empático, humano, compassivo e egoísta ao mesmo tempo. Não há fórmula matemática ou teoria científica que o valide. Não desisto das pessoas, mas abdico da esperança que sempre me moveu na vida. As pessoas são o que são e, por melhor que as tratemos, jamais mudarão. É preciso aceitar aquilo que não podemos mudar.

Hoje baixo os braços e ostento a minha bandeira. Talvez tenha de caminhar sozinha, no tempo que me resta, talvez esta bandeira acabe no pico de uma montanha que ninguém conhece e por ali fique, a lembrar a existência de alguém que não queria desistir da raça humana, mas trocou isso pela paz de espírito.

 

Alexandra Vaz

 

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14.6.19

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Foto: Mirror - Med Ahabchane

 

Sair da zona de conforto, fora da caixa, evoluir, progredir, desenvolver capacidades, atingir novos patamares, concretizar desafios, ultrapassar objetivos, realizar sonhos. Uma vida em pleno, sempre, cheia. Invejável.

Muito do acima enunciado implica que, de uma forma mais ou menos consciente, se quebrem regras, é um modo de falar – muitas são expressões que estão na moda, uma espécie de motores de desenvolvimento – para referir novos modos de fazer, sem os quais muito dificilmente se sairá de uma qualquer espécie de padronização, a tender para a pasmaceira.

Soa bem, parece bem este modo de falar. Será uma forma, a forma, que permitirá deixar uma marca neste mundo, na vida, além, portanto, de nos limitarmos a passar pela vida ou a vida por nós.

 

Quebrar regras... mas quê? À custa de princípios, valores, quadros de referência?

Se eu concretizar as minhas ambições, tornar os meus sonhos realidade, alienando valores e princípios, pisando tudo e todos à minha volta, ficarei satisfeito? Estou a ser justo, honesto?

Engano os que se cruzam comigo, roubo, minto, faço trapaça. Como é que sou visto? Mais e, principalmente, como é que me vejo, olhando para dentro? Consigo enganar-me a mim próprio, agora a quente e depois, mais a frio? Sou desonesto para comigo mesmo. Tiro os espelhos todos da minha vida?

E depois, o que resta? O que fiz e atingi, tem valor? O que digo e faço é admirável ou lamentável. Tem moral, é imoral ou amoral.

Há que nos pormos em causa. Há que agir sempre como se estivéssemos a ser observados. Começar por ser honestos, transparentes, connosco, visíveis e com bom reflexo ao espelho ou à janela.

 

Jorge Saraiva

 

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10.6.19

People - Solie Jordan.jpg

Foto: People - Solie Jordan

 

Os valores perderam valor para se valorizar, o que é menos valorizável. Os alicerces são frágeis e quando vacilam é simplesmente desastroso. Triste. O caminho tende a ser o mais rápido e menos tortuoso.

Gostava que todos tivessem conhecido o meu avô Manuel. Um homem gigante. Um exemplo de pessoa. Respeitado e adorado por todos lá na terra. Recordado pelos seus valores. Honesto. Despediu-se de mim tinha eu cinco anos, mas marcou-me de tal forma que é a pessoa que mais admiro.

Felizmente a minha mãe herdou o seu caráter e, juntamente com o meu honesto pai, ensinou-me o que é a honestidade. Sou uma pessoa cheia de sorte porque cresci com gente honesta e orgulho-me dessa gente também por isso. E a vida foi simpática comigo ao colocar no meu caminho o homem honesto que tenho ao meu lado.

Talvez seja por isso que não tolero desonestos. Sou honesta comigo ao recusar-me a lidar com isso e honesta com eles porque nem faço o esforço para esconder.

 

Marisa Fernandes

 

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7.6.19

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Foto: Grandpa - Rita

 

Recordo-o frágil, de magreza escondida pelas abastadas calças de bombazine de cor verde-terra. Pose aprumada a contrastar com o andar oscilante, jeito do vício que lhe ficou para se movimentar sem a ajuda dos músculos, que há muito não tinha, e dos ossos que já não eram confiáveis. Via-o chegar assim, das suas deambulações pelos campos. Corria para ele, abrandava o passo com a proximidade, afastava-me depois de ter sentido os seus dedos ossudos afagarem-me os cabelos.

Recordo-o calvo. A cabeça nua, resguardada do sol e da chuva pelo chapéu de feltro castanho do qual se separava apenas quando entrava em casa. Estava marcada, por anos de uso do chapéu, com uma linha continua da testa à nuca, de onde espreitavam algumas cãs resistentes à queda. Eram poucas. Estavam ali para lembrar o trabalho do tempo numa farta cabeleira. O tempo nele, fez das dele. Deixou-lhe, caprichosamente, dois enormes incisivos dos quais se servia para mastigar, com esforço, diga-se. Não era homem de muito sustento e mais depressa do que mastigava, livrava-se da comida repartindo-a pelos netos que cirandavam por perto na hora da refeição. Foi nesta repartição de alimentos que aprendi a gostar de vegetais, grelos em particular. Vindos dele, não me amargavam, tinham o tempero adocicado do carinho. Que bem que me sabiam!

O tempo trabalhou-o. Redesenhou-lhe, com rugas vincadas, a cara, o pescoço, as mãos e toda a fisionomia, só não lhe arrancou o brilho no fundo acinzentado onde pousavam duas pupilas vivas, desde sempre habituadas a ver até ao mais profundo da essência humana. Conhecia as pessoas que o rodeavam. Sabia-lhe os defeitos e as necessidades e respondia-lhes com honestidade. Não desvalorizava a palavra com discursos balofos, era até de modestas falas, mas era homem de palavra. As pessoas sabiam-no e usavam-no. Naquele tempo, o tempo em que quase nada obrigava a outras formalidades para além do testemunhal, pediam-lhe mediação nos conflitos e testemunhos nas negociações. Nunca tal prática lhe rendeu mais do que a satisfação de fazer a coisa certa. O sustento que punha na mesa era o produto modesto do trabalho honesto, arrancado da terra com a ajuda da mulher e dos filhos – refiro estes em nome da verdade - e nunca de trabalhos prestados à comunidade.

 

Bondade, justiça e honestidade nem sempre estão juntas, mas para ele, que não sabia defini-las por palavras, umas arrastavam as outras. Aos pobres e pedintes fazia-lhes justiça sentando-os à mesa e repartindo com eles o que havia para comer. Aos sem abrigo não faltava um telhado onde pudessem abrigar-se das intempéries. Sem alarido, com discrição, caraterística sua, o dia a dia era uma escola onde aprendíamos as boas práticas morais e de convivência.

Aprendi com ele que ser honesto compensava e que se as pessoas soubessem como era compensador, experimentariam sê-lo, ainda que fosse pelo egoísmo de se sentirem compensadas.

Num dia 16 de março, de um ano, há muitos anos, deixou-nos. Mas, passado meio século da sua partida, o meu avô ainda é referência para a pequena comunidade em que viveu e em especial para a família, por isso, ser honesto é mesmo compensador e eu tenho que lembrá-lo quando me pedem para falar de honestidade.

 

Cidália Carvalho

 

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3.6.19

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Foto: Woman - Manfred Antranias Zimmer

 

Na encruzilhada de um caminho, deparamo-nos com duas possibilidades. Respira. Olha para dentro. Respira, de novo e longamente. Uma das possibilidades pode parecer mais fácil aos estímulos, mais breve. Outra mais longa, morosa e, por vezes, com nevoeiro, sem clara imagem do destino.

A satisfação de coisas vãs é mais prazerosa, mas, na realidade, talvez seja em nós próprios que o verdadeiro prazer resida.

Dentro de ti, as respostas não assomam à vista. Respira uma e duas vezes. O assumir de limites, do que de mais verdadeiro encontrares em ti.  Leve o tempo que levar. De noite, quando deitares a cabeça na almofada, tenta desenhar o que encontrares para veres o verdadeiro caminho, em ti. Depois de o veres na folha, espera que as tuas necessidades e desejos possam encontrar o seu meio de chegar à tua vida e aí se conservar.

 

Maria João Enes

 

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31.5.19

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Foto: Child - Edgar Marques

 

Era aquela criança que me aproximava daqueles que andavam sempre sozinhos. Que via no olhar deles a infelicidade e a solidão. Que repreendia quem os maltratava, mesmo sem ser violência física. Por vezes, as palavras são mais severas e têm um impacto maior.

Fui crescendo e vi que, infelizmente, essas pessoas existem num número maior do que aquele que desejava ver. Mas não conseguia amparar nem falar com todos os que se sentiam sós. Apenas alguns.

Apercebi-me também que, a determinada altura, até eu estava emaranhada na teia de alguém que se dizia ser, que dizia acontecer, que podíamos ir e alcançar. Fui, feliz, de mão dada com o vento. Até a chuva cair, até o próprio chão desaparecer. Até deixar que me pisassem e pensar. Por vezes somos tão ingénuos, tão honestos, demais ao que parece. Que quando damos conta, estamos rodeados do mal, rodeados de invejas.

 

Quando pensamos que um sorriso é verdadeiro, temos de observar mais do que um mero sorriso. Ir mais além, para o nosso próprio bem. E daqueles que nos rodeiam. Até onde vai a maldade das pessoas? Até onde conseguem ir? Aqueles valores que nos ensinam, que nos tentam incutir para sermos melhores seres humanos. Para ajudarmos o próximo. E nós? Que confiamos em palavras bonitas, sorrisos falsos ao que parece. Quando damos de nós e se aproveitam amargamente da nossa bondade e fragilidade. Estaremos seguros neste mundo desonesto? O que acontecerá a todas as pessoas que são como nós? Que traz de bom a essas pessoas pisar os outros?  A glória de fazer mal? Isso deixa-os felizes? Se sim... estamos perdidos. Ser ou não ser?

 

Inês Ramos

 

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27.5.19

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Foto: Jewelery - Nuno Lopes

 

Conhecido simplesmente por Sr. Nunes, assim era tratado de forma carinhosa por quem recorria aos seus serviços de artesão da indústria de prata. Foi um exímio artista na conceção, fabrico e reparação de joias e de artigos de prata. Exercia essa profissão, que por natureza é de cunho artesanal, na própria casa onde vivia, em prédio muito antigo, do século XV, sobranceiro ao Rio Douro, em privilegiada zona histórica da cidade do Porto, na freguesia da Sé.

Na sua modesta casa, sentia-se e vivia-se um ambiente de bem-estar que transmitia serenidade, um viver saudável a que não eram estranhos os nobres princípios pelos quais orientava e pautava a sua forma de estar na vida, quais sejam: o rigor, a modéstia, o recato e a probidade. Sempre coerente a agir na prática dos seus atos e no seu modo de pensar, qualidade rara de que era dotado, muita estima e confiança granjeou daqueles para quem trabalhou e com quem conviveu.

Dedicou-se intensamente a essa nobre profissão, que abraçou desde muito novo, praticamente desde a infância, seguindo assim uma velha tradição de família, honrando e fazendo jus aos pergaminhos dos seus antepassados, também eles exímios e consagrados artífices que foram na indústria de ourivesaria de prata. Era com esmero e rara habilidade que dava largas à execução dos seus trabalhos, aprimorando quaisquer produtos de ourivesaria, quer na criação ou na reparação de artigos de prata.

Foi sempre fiel a si próprio e aos princípios pelos quais se norteava, nunca deles abdicando, tendo percorrido na sua vida um longo caminho de trabalho, em que estiveram sempre presentes, no seu dia a dia, a verdade, a compostura, o decoro e a ética. Para ele, o mais importante era ser cumpridor dos seus deveres, ser íntegro, coisa rara nos tempos que correm, mas que tal não fosse por pressão social, económica ou por temor de represálias, porque nele residia essa nobre virtude e dela tinha consciência de que assim deveria ser para o seu bem e, sobretudo, para todos aqueles com quem convivia.

Por isso nunca enriqueceu, e muito menos foi um homem abastado, o que, aliás, a tal não aspirava, mas possuía uma outra e de maior riqueza, embora invisível, a da sã e autêntica honestidade, cuja dimensão fez dele um homem integro na “arte” de viver e na sua atividade profissional, virtude que o tornou inesquecível para quem com ele conviveu e conheceu de perto.

 

José Azevedo

 

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24.5.19

Statue - Jasmin Sessler.jpg

Foto: Statue - Jasmin Sessler

 

Tenham cuidado com os agressivos, mas fujam dos desonestos.

Andar na vida com nuvens que criei em cima da cabeça, porque perdi o coração, que me podem pesar ao ponto de não se conseguir empurrar o caminho para a frente, não quero, não posso, não consigo!

Também é verdade que estas nuvens só existem se há consciencialização da sua origem e das suas consequências. E quando elas existem e a indiferença é tão grande, que só eu interesso? Perigoso!

Tenho traços na memória que a família me trouxe, que não renegam a verdade, renegam a mentira, renegam a fraude e, de tal forma estão presentes, que não consigo, nem quero, nem posso apagá-los.

Não percam o coração ou não o deixem fugir. Ver o outro, mesmo o desconhecido, como um ser bem-vindo, é acreditar que é verdadeiro. Infelizmente, pela convivência, percebemos que muitos já perderam o coração e, então, vale tudo! Desilusão!

Tenham cuidado com os agressivos, mas fujam dos desonestos. Estes magoam mesmo, pois destroem a fantasia que alguns ainda têm sobre o ser humano.

O caminho que percorremos tem de ser claro, honesto e justo. Será que algum dia sonhei com isto, ou será mesmo um sonho percorrer um caminho assim?

Fujam dos desonestos!

 

Ermelinda Macedo

 

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20.5.19

Rainbow - Gerd Altmann.jpg

Foto: Rainbow - Gerd Altmann

 

Tudo se passa entre a verdade e a mentira.

A medida factual dos acontecimentos é frequentemente distorcida segundo a vontade dos intervenientes, por isso há que preservar a honestidade que enaltece e enobrece o caráter dos indivíduos. Esse valor raro que se encontra em perigo de extinção no seio desta sociedade sedenta e competitiva.

Proteger e valorizar a integridade, a veracidade e a franqueza.

Ser-se como é.

Ser-se o melhor que se pode ser.

Dar o melhor de si aos demais e fomentar o melhor dos demais. E nesta positividade iniciada pela honestidade, o mundo se tornará um pouco mais risonho, pouco a pouco, com o contributo coletivo de cada um de nós.

 

Sara Silva

 

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17.5.19

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Foto: Girl - FotoRieth

 

Por várias vezes, nos mais variados contextos, acusaram-me de excesso de zelo. Só não percebo porque o fizeram em jeito de acusação se, para mim, é visto como um elogio. Elogio, sim, pois o excesso de zelo pode ser confundido com a honestidade no seu extremo e a honestidade é uma qualidade. Ou não será?

Talvez seja uma pessoa de extremos e estes são mal vistos por muitos que não aguentam a pressão da responsabilidade de assumir todos os seus atos, de dar a cara por causas em que verdadeiramente acreditam, de ficar na sombra quando é isso que é preciso, mesmo tendo o papel principal em todo o processo e desenrolar da história.

Há quem precise de ficar com os louros, mesmo tendo feito tudo não por mera honestidade e zelo, mas porque tem como objetivo final o seu proveito próprio, nem que seja alimentar o ego e pensar que vai para a cova de consciência tranquila.

 

A honestidade pode ser confundida também com inocência, por se deixar enganar por outros que se aproveitam do zelo e empenho de uns e daí tirem o seu proveito. Sim, também pode acontecer. Neste caso, opto por manter a honestidade, não à pessoa em si, mas à causa, ao propósito final do que nos é pedido e sugerido fazer e que vemos ser realmente útil e com sentido.

“Mas, eles estão a aproveitar-se de ti!”

E daí? Serão eles a aproveitar-se de mim ou serei eu a otimizar ferramentas para continuar o caminho que escolhi? Deixai-os pensar dessa forma.

Os limites são desenhados por cada um, cada indivíduo escolhe até onde consegue ir.

No final a conversa é entre mim e aquilo em que acredito.

 

Sónia Abrantes

 

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13.5.19

Witch - ID 942987.jpg

Foto: Witch - ID 942987

 

Dizem que era uma vez uma mulher chamada Sogra, muito, muito má. Mal-encarada, metediça, feia como uma verruga de bruxa, escanzelada como uma erva ruim arrepiada pelo vento. Entendam:  ela não nasceu Sogra. Se calhar, nem nasceu má, nem feia, nem verruga, nem joio – pelo contrário, há quem diga que ela era até uma joia, antes de lhe porem o nome Sogra. Mas, claro, isso do disse-que-disse é poça de água turva, onde não se pode, nem se deve, lavar os ouvidos…

Bem… seja como for, diz que essa tal megera, uma certa tarde peganhenta, depois de uma jornada de trabalhos duros pelas leiras da vida, se sentiu sem forças, morta de sede e de cansaço, desesperando por um fio de água que lhe aliviasse a secura da boca e da alma.  Mas nem rio nem arroio lhe valiam, tudo à sua volta era secura e silêncio: nem cantar de fonte próxima, nem coaxar de rã longínqua. Quando a tarde começava a definhar, finalmente, escondida por uma mancha verde escura, ela descobriu o que lhe pareceu ser a estrutura altiva de uma nora – primeiro viu um alcatruz, depois outro, depois percebeu, pela disposição dos recipientes, a curva de uma enorme tarambola. Parada. Mas era uma nora – que alegria a dela! Cheia de um novo ânimo, a criatura correu para ela, de braços abertos, como se quisesse abraçar o esqueleto enferrujado do mecanismo, que, para ambas, seria a esperança da água, da vida. E, oh, sim, havia água, no fundo do poço! Havia luz, a luz rósea da tarde, refletida naquelas águas, paradas, pensava ela, apenas porque ninguém, há muito tempo, as abençoava com o beijo da sede!

Mas aquela nora, de vulto sombreado pelo decair do dia, e de toque áspero, pela ferrugem dos anos e pela oxidação da sua própria herança férrea, negou-se a mover, à pouca força dos seus braços – antes a repeliu, quase empurrando o seu corpo magro para o poço alvoroçado por algumas pedras que rolaram, como lágrimas, a seus pés.  Aquela nora, ofuscada pelo seu poder inesperado, ciosa dos seus domínios de egoísmo, avara da água de que se julgava guardiã e senhora absoluta, zombou da sua fra(n)queza e, como uma burra teimosa, fincou os dentes da roda, arvorou-se em coisa superior, e condenou a Sogra ao amargor da sede - condenando-se, a ela própria, ao chiar pulverulento dos emperrados por soberba.

Dizem que a Sogra ainda anda por esses campos, juntando as forças que precisa para encontrar, quem sabe, águas tranquilas. Um ribeirinho, que seja. Uma chuvinha mansa, que baste para lavar a alma.

 

(Lendas são lendas:  em contracena com uma nora, ferrugenta ou não, o povo põe sempre uma sogra, malvada ou nem tanto, vá-se lá saber porquê. Nomes são apenas nomes - a Força, dão-lhes as pessoas que os usam, em sede ou em ignorância.)

 

Teresa Teixeira

 

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10.5.19

Beauty - Chí Nguyen Quoc.jpg

Foto: Beauty - Chí Nguyen Quoc

 

Ultimamente, tenho visto, com interesse, uma série que no seu fundamental foca a experiência da moralidade humana. Evidentemente que, para ter audiência, veste-se o tema com humor, satirizando a triste realidade da finitude da nossa estadia por estes lados e a expetativa de se ter (ou não) uma recompensa “pelos bons serviços prestados”. Em resumo: ser “bom” ou ser “mau” durante a vida determinará uma recompensa ou um castigo eterno. Soa familiar, certo?

Ora, cheio de lugares comuns, como podem imaginar, está o argumento. Conceitos como o livre arbítrio, as escolhas pessoais, os modelos seguidos e, claro, a força de vontade. Força de vontade para, depois de vividos e instruídos, agirmos em consonância com a nossa consciência e com as leis / regras / ética / costumes / moralidade do contexto em que vivemos.

Em princípio, aqui residiria a fórmula para a etiquetagem da “boa pessoa”. Claro que isto assim posto, de forma tão redutora, sem os constrangimentos e exigências de um texto que “altere o mundo”, leva à conclusão da seguinte causa-efeito: “se queres ser um tipo às direitas (e até merecedor de um paraíso, se essa for a tua convicção), basta teres força de vontade”.

 

É claro que isto não chega. É claro que não é suficiente. Porventura, se não contássemos com a instabilidade inerente ao ser humano, em que “um dia é uma coisa e noutro dia é outra”, poderíamos ter esperança num movimento em contínuo, no sentido da elevação do ser e (porque não?) do espírito. Mas não somos assim e todos o sabemos. É também certo (e ainda bem), que “uma má atitude, não faz de mim má pessoa”, abrindo-se assim um buraco negro descomunal que nos conforta a consciência de cada vez que nos atraiçoamos.

Porque sim, desengane-se quem pense que o maior prejudicado nessas situações será um qualquer terceiro, vítima da nossa ação. Se o pensamento sobre o facto se evadir, se as noites forem bem dormidas, se o humor for o melhor, assim como o apetite, podes ter a certeza que o teu “grilo falante” não está a fazer bem o seu trabalho. Mas lá está, se calhar a culpa é dele e nunca tua. Força para se encontrar bodes expiatórios, é coisa que nunca falta.

 

Rui Duarte

 

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6.5.19

Love - Janko Ferlic.jpg

Foto: Love - Janko Ferlic

 

Senta-te aqui, em silêncio, e espera que o tempo passe. Não mexas um dedo e a dor irá embora. Ali, ao virar da esquina, está tudo aquilo de que precisas, mas agora só por um momento, para. Detém-te aqui, observa a cadência do teu coração. Permite-te este espaço, este tempo, sem explicações que nem tu podes entender. Dizem os vizinhos que “tens de ser forte”, “tens de “esquecer”, que “já está na altura”. Nem sabem que, quando to dizem, te tiram o direito de ser humana. Precisas muito de atracar, dentro de ti, de resgatar o que resta, de respirar fundo sem cair. Precisas de carpir, de gritar, de envolver nas tuas lágrimas toda a dor que te consome para que saia de ti. Fica aqui. Não dês nem mais um passo que te aproxime do abismo dos outros. Precisas de tempo, mesmo que não to lembrem. Todo o tempo de que precisares.

 

Ontem vi-te à janela. Olhavas o horizonte e sorrias sozinha. Achei tão bela aquela imagem, apesar da tristeza velada no cantinho do teu olho, que contrastava com a luz do teu sorriso. Tive vontade de tocar à tua porta, de te convidar para um café e um passeio no parque. Se calhar, fazia-te bem. Sei que ninguém te visita há muito tempo, que ninguém te vê na rua desde o funeral dos teus filhos. Diziam-te que tinhas de ultrapassar, sem saberem que jamais se ultrapassa uma coisa destas, ainda que um dia possas seguir em frente. Não consigo imaginar a tua dor, nunca perdi um filho e a simples menção do mesmo faz-me tremer inteira. Não sei como se vive isto, como se continua a respirar depois de uma perda tão profunda. O que te digo, então, que te possa aliviar? Nada, nada te pode aliviar e é por isso que fugimos todos de ti. Não sabemos o que dizer, o que fazer - logo a ti, que sempre soubeste as palavras certas, a dose certa de cada abraço, todas as vezes que a vida nos tolheu os dias. Desculpa...

 

No Outono passado, cruzamo-nos na escada. Saías com os miúdos, felizes e barulhentos, cheia de sacos e coisas coloridas. Sorri e disse-vos olá, troquei algumas palavras com os pequenos e segui, certa da vida que me corre nas veias, sem supor que seria a última vez que vos veria. Nesse dia sorriste, visivelmente cansada, mas feliz disseste que a tua mãe fazia anos e que lhe tinham preparado uma festa surpresa. Os miúdos, com 4, 6 e 8 anos saltavam, excitadíssimos, certos de que a avó iria adorar os seus presentes. Lembro-me de ter pensado que os teus filhotes eram meninos muito doces, felizes e que tinhas muita sorte em ter uma prole assim. Não, não imaginava que o Sr. Alberto, o motorista do colégio que os ia buscar a casa diariamente, sofresse um AVC fulminante e morresse ao volante do autocarro escolar, com os teus filhos lá dentro. Ninguém sobreviveu a este acidente, nem os pais que estavam em casa. E a vida mudou, inteira.

 

Mais de um ano se passou e tu quase nunca sais de casa. Nas primeiras semanas, as noites eram interrompidas pelo som do teu choro, convulsivo e cheio de angústia. Agora já não choras, mas também não vives. Abres as janelas e, por vezes, assombras à janela, mas não existe vida em ti. Faze-lo mecanicamente, sem pensares o que te leva a fazer aquilo, todas as manhãs. Pergunto o que será necessário para que redescubras um sentido na vida, para que possas caminhar mesmo sem os teus filhos. Há muitos meses que dou por mim em frente à tua porta, ao regressar do trabalho, num misto de dor e de absoluta tristeza. Pergunto-me se sabes que fico ali, todos os dias, em silêncio, incapaz de perceber o que vai no teu coração, do outro lado da porta. Não sei como chegar a ti sem te assustar, como te ajudar sem ferir, como te olhar nos olhos sem que me apeteça chorar. Não sei. Mas todos os dias entro em casa e abraço os meus filhos, contigo na alma, triste pela dor que te consome e da qual não te consegues livrar.

 

Hoje de manhã decidi que ia tocar à tua campainha, ainda que a angústia me dissesse para não o fazer. Saí de casa, levei umas fatias do bolo que tinha feito ontem, enchi-me de coragem e rumei à tua casa. Quando saí do elevador ouvi o riso de uma criança, a tua voz e parei no corredor. À tua porta, estavas tu e a filha dos vizinhos da frente, com 3 anos, que te agarrava a mão enquanto te olhava nos olhos. Pela primeira vez, em muito tempo, presenciei a tua gargalhada. Não fui capaz de me dirigir a ti, permaneci tão quieta quanto possível, naquele canto, a admirar-te cada vez mais, pela capacidade de estares, simplesmente, ali. De estares viva. Quando puseste o joelho no chão, a menina beijou-te na face e convidou-te para o seu aniversário. Penso que te apanhou desprevenida pois não foste capaz de recusar aquele convite. Os pais, agradecidos, confidenciaram que a pequena acordava há vários dias a falar em ti e que não descansou enquanto não foi convidar-te pessoalmente. Depois de se despedirem ficaste ali, de pé, com o olhar perdido no vazio, mas serena e sorridente. Como se algo tivesse mudado, como se por um momento tivesses respirado mais fundo e o mundo não fosse só dor.

 

Apesar dos sinais de esperança, dos pequenos momentos que podem construir um futuro pelo qual valha a pena lutar, sei que não vais ultrapassar nem esquecer e que há memórias que vão doer sempre. Talvez já o saibas também e, por isso mesmo, aceites seguir em frente, sabendo que tudo isto caminhará contigo, até ao último dos teus dias. Podes construir novas memórias, conhecer pessoas extraordinárias, ter até outros filhos, mas serás, para sempre, a mãe do João, do Pedro e da Clarinha. Na dor que te procurará, em ondas violentas e inesperadas, nos dias ainda por vir, eles serão eternamente o teu oceano de amor. Dizem que és forte porque não choras, porque não gritas, porque ninguém te vê sangrar por dentro. Eu acho que és forte porque te permites sentir tudo isto, visceralmente: a dor e o amor. Regressei a casa com o bolo, as palavras e os pensamentos; amanhã talvez tos leve. Hoje, estou certa, o dia acordou contigo no pensamento.

 

Alexandra Vaz

 

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3.5.19

Pretty - Deedee86.jpg

Foto: Pretty - Deedee86

 

Não sei, não sabe ninguém que força nos anima em determinadas circunstâncias. A verdade é que move e impulsiona os nossos instintos, obriga-nos a cumprir deveres e a gozar direitos e alegrias. Com ela defendemo-nos e sobrevivemos. Sentimo-la ao de leve ou a encorpar-se quando a reação assim o exige. É um processo interno, individual, que nos remexe e incomoda até lhe franquearmos saídas para se libertar. É incontrolável. A vida vai-se desenrolando larga, promissora, mas também profusa em obstáculos. E nós, porque a vida tem muita força, com essa força os vamos arredando e ultrapassando.

Acordamos e a única coisa que nos apetece é ficar deitados sem ver, ouvir ou falar. Esquecer que o mundo fervilha e nós temos que acompanhar esse movimento. Fixamo-nos no vazio, não queremos fazer nada e não sentimos vontade de contrariar esta apatia, esperamos que algo aconteça e nos anime. De repente, como que movidos por uma mola, saltamos da cama, esquecemos as razões da inércia que nos tomou ao acordar.

Que força nos anima, afinal? O amor, claro – evidenciam uns. A vontade de mudar e vencer – dizem os ambiciosos. O sentido de justiça e consciência social – afirmam os politizados. A maldade e a bondade – adiantam os moralistas. A esperança. Dizem que enquanto há vida há esperança, ou o ditame é bem, enquanto há esperança há vida? O que quer que seja, de uma maneira ou de outra, a esperança, o gosto pela vida ou a obrigação de viver impulsionam a força que há em nós. Ou será a força que impulsiona tudo isto?

 

Essa força denuncia-se nos atos que praticamos ou aos quais somos expostos. Não é possível quantificá-la nem mensurá-la à luz das unidades de medida conhecidas, mas é possível avaliar a grandiosidade em função das circunstâncias. Saberá alguém de quantos quilos ou metros precisa um condenado para se arrastar e subir (sabendo que não vai descer) os degraus que terminam no patíbulo? Que intrigante é essa força que vem, sabe-se lá de onde, que o mantém de joelhos, sentado ou em pé na espera do contacto frio com a lâmina ou da bala incandescente que lhe há de ceifar a vida! Não tem outra saída, dir-me-ão. E eu percebo, mas não ter outra saída não invalida a força presente na espera do momento final, o organismo simplesmente poderia desistir e abandonar-se à atonia. Mas não, reage até ao fim.

Conta-se que a rainha Antonieta no momento em que subiu ao cadafalso para ser decapitada terá pisado, inadvertidamente, o pé do seu carrasco. Com sincero pedido de desculpa ainda explicou que não o fez de propósito. Reação semelhante terá tido a Marquesa de Távora quando, ao porem-lhe o capuz e se soltou uma madeixa do cabelo, ela pediu para não a descomporem ao mesmo tempo que tapava um calcanhar que o vestido teria deixado a descoberto quando se sentou à espera que a decapitassem.

O que quer que sejamos ou nos aconteça, temos em nós uma inesgotável força energética que nos muscula a alma e não nos deixa cair vencidos.

 

Cidália Carvalho

 

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