11.3.14

 

Tira-o dali, por favor! disse ela. É só um cão às voltas, respondeu ele. O cão “às voltas” estava no meio da estrada, parecia confuso e perdido e, na verdade, prestes a ser atropelado.

Ela continuou a insistir que o cãozinho ia morrer, e ele parou. Parou apesar do perigo de parar assim para apanhar um cão estúpido. Parou apesar de saber que pode ficar caro tentar ajudar um ser vivo que, em rigor, nem se sabe se está a precisar de ajuda.

Acordou uma semana depois, numa cama de Hospital. Afinal parece que tentar salvar um cão pode levar um tipo a ser atropelado. Passaram-se uns tempos, ficou bom, a namorada não falou mais no cão, tentou esquecer o que se passara.

Mas deitou a mão ao pescoço e a medalhinha não estava lá.

A minha medalha?

Era uma medalha de um santo qualquer, dada pela avó há muitos anos, para o proteger. Estava pendurada num fio de ouro, fininho, que ele não era gajo para andar para aí de correntes pesadas ao pescoço, estilo gangster. Usava-a por dentro da roupa, era o que lhe restava da avó. Não tinha nada de religioso, mas prometera à avó que a ia usar sempre e tinha cumprido.

Procuraram por toda a parte, nada.

Seguiram-se perguntas, quem me levou ao Hospital, quem me tirou a roupa, será que a tinhas levado? Claro que sim, NUNCA a tirava.

Ficou às voltas dentro do seu cérebro… as pessoas não têm valores, princípios? Roubaram-lhe uma medalha de valor insignificante enquanto estava indefeso? Estava ferido, inconsciente, e roubaram-lhe uma medalha. Já não há princípios?

Sentiu-se uma personagem daqueles filmes de cowboys em que se vê a malta a roubar as botas e as roupas ao desgraçado que acabou de levar um tiro, porque já está morto, então que diferença faz? Sentiu-se maltratado, furioso, revoltado. Já não há respeito pelos doentes, pelos moribundos, pelos fracos? As pessoas já não têm educação? Onde estão os valores? Antigamente havia valores!

Depois, com o tempo, foi acalmando. Alguém lhe roubou uma volta e uma medalha sem valor de mercado mas com um valor insubstituível para ele, para quê? A estupidez humana tem limites? Começou a dar-lhe vontade de rir, começou a diverti-lo a situação. O que ganhou, na realidade, quem lhe ficou com aquilo? Dinheiro? Só para rir! Algo para exibir? Sem qualquer significado? Só para rir, também.

Durante alguns meses foi pensando, refletindo. A avó ainda estava com ele, nas suas memórias e recordações. Ia estar sempre. E tinha tentado salvar um cão, que, afinal, fugira incólume para fora da estrada. Estava vivo, bem, a namorada também. Tinha muita coisa boa pela frente.

E a medalha? A medalha pelos vistos não o protegera grande coisa, ou talvez tivesse protegido.

De qualquer modo, já não a tinha, já não era sua.

Pensou um pouco mais… quem ficou com ela… quem acabar com ela… espero que lhe dê muita sorte e que seja protegido, abençoado.

Se a medalha foi embora, talvez estivesse no momento de ir. Talvez fosse tempo de passar a boa sorte a outro, de abrir os horizontes a alguém. De incutir bons valores a outra pessoa. Sorriu, descansado.

Se a medalha fizer coisas boas por aí, isso sim, é a cereja no topo do bolo.

 

Dora Cabral

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 10:00  Comentar

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