28.11.14

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Já te sentiste assim, tão só? Tão só nas tuas convicções, tão só e tão contra o mundo? Contra o mundo, porque a tua perspetiva parece ir contra o que no mundo em redor se pratica? As tuas ações, a tua forma de te passeares pela vida? Porque pareces estar ao contrário dos outros, como se estivesses errado? E depois é isso. Parece que estás errado, quando dentro parece tão certo. Essa certeza dentro pode ser tão poderosa, como poderosa pode ser essa solidão de tão diferente ser do mundo. Confusão? Claro. Fosse tudo claro, não seria díspar.

O que fazer então com esse sentimento? De tão só? Desistir e juntar-se ao bando? Deixar a lã preta da ovelha e ser uma amálgama branca de algodão doce? Dói ser um contra o mundo. Dói e sempre vai doer. Como é tentador descansar a alma num rebanho. Parecer encaixar e, de repente, estar tudo em harmonia. Assim tão simples. Rejeitar qualquer necessidade de ser único. De ser, incansavelmente, fiel. Vontade de mandar a própria natureza para um baile de máscaras. Mas, um, só pode ser ele próprio. Ou então, anular-se. Mas, até que ponto, essa aparente harmonia aos olhos do mundo, não se transforma numa tormenta? Pior que a solidão de ser, sempre, leal à natureza intrínseca?

Sábios são os poetas e artistas, que se entregam à dor prazerosa de ser Um. Uno em si. Corente, numa salgalhada que só eles entendem. Mergulhar dentro do próprio mundo e lá restar. Até que ponto vale a pena explicar ao mundo a essência do Eu? De nada. Ou talvez tudo, quando o mundo estiver disposto a escutar cada um. E, a entender, imaginando-se, no outro. Sair do mundo, para ser, por breves instantes, um, só. E aquele, apenas. Até lá, e para sempre, a vida vai ter uma pessoa sempre presente e com quem tens de, obrigatoriamente, te dar com. E de preferência, bem. Tu.

 

Cecília Pinto

 

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26.11.14

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E há o momento em que tudo muda, já nada mais será como sempre foi... 

O medo assalta-nos porque desprotegidos estávamos, vivíamos na inocência de que tudo é comandado por nós, pelas nossas certezas, pelos nossos sonhos.

O futuro reinava no agora, tudo era dado como certo, tudo estava planeado ao pormenor, pouco falhava. Tínhamos mais uma vez o nosso ego a criar a mais bela história de encantar e acordados sonhávamos na esplendorosa ilusão sustentada pela mentira de que tudo sabemos.  Mas na verdade nada sabíamos, caminhávamos e respirávamos na inocência de que tudo é macio e de que nada de errado nos aconteceria... Até que a vida nos volta a ensinar que a ilusão de que tudo é idílico é a maior catástrofe a que estamos sujeitos. E somos envolvidos na desilusão... Em vez de sangue nas veias corre veneno que corrói todo o nosso interior, sentimos o murchar dos nossos órgãos tal e qual uma tempestade que se abate sobre um lindo lugar onde tudo estava aparentemente ordenado. A beleza está agora embaciada e lá no fundo uma pequena luz ténue insiste em brilhar, a chamada Fé. Bênção com que somos presenteados na condição de humanos, nunca a perderemos enquanto respirarmos, é tão certa a sua existência como o bater do nosso coração. E é com esta luz quase apagada que renasceremos para restaurar todos os danos que causamos ao nosso templo, durante o tempo que precisamos para acreditar que tudo aconteceu para, mais uma vez, termos a oportunidade de usar a força da criação.

Sem dúvida que nos vamos levantar e mediremos o tamanho da nossa força, se esse novo renascer for feito sem muletas, sem ajuda externa, só com a ajuda das nossas capacidades interiores. 

Só com o controle dos pensamentos e com a purificação do orgulho, da mentira, do apego, da raiva e muito mais fragilidades que escondem as lindas potencialidades que vivem sempre connosco, como o Amor, a humildade, a entrega, a aceitação é que será possível não cair na tentação das fraquezas que nos levam à ilusão. 

Tudo foi criado por nós em alguma altura da nossa existência e só acreditando que é assim o processo de crescimento da Alma é que seguiremos na direção da união com Deus, só na pura humildade e aceitação de que erramos porque estamos a aprender é que seremos dignos de voltar novamente a casa. Perfeitos, celestes, luminosos, vazios na leveza da personificação.

Na verdade somos todos Um só, neste Mundo em que habitamos, todos trabalhamos para uma Essência única e por isso cada um de nós representa um pontinho dessa grande e majestosa manifestação que, humanos que somos, não conseguimos identificar.

E Lá na Fonte inesgotável de Amor, Luz e Energia Divina, tudo é meticulosamente ordenado e para nós, Povo do planeta Terra, é-nos enviada uma leve fragrância do sublime aroma do que se respira no "Paraíso", mas só os que estão despertos é que serão abençoados por tal "relíquia".

 

Joana Pereira

 

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24.11.14

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Em dias em que nos sentimos bem é mais difícil pensar como um ser individual, porque nos sentimos parte de algo, mesmo que esse algo não esteja bem definido.

Somos habituados a viver em sociedade e inseridos em grupos sociais desde muito pequenos: no seio familiar, na creche, na pré-escola, na escola, na catequese, no grupo de ginástica, nos escuteiros, no clube desportivo…

Quando nos apanhamos sozinhos por vários momentos sentimo-nos mal, incapazes e insatisfeitos.

Preferimos estar rodeados de muitos amigos, do que conversar com O amigo de vez em quando.

Por vezes pergunto-me se será assim tão importante aprender desde cedo a viver em sociedade.

Não será mais pertinente aprender a lidar connosco próprios para depois conseguir conviver e compreender melhor os outros?

Só agora, depois de adulta, conheço a importância de saber estar sozinha.

Sempre vivi rodeada de pessoas, muitas pessoas e, quando me confrontava com a solidão, chorava… Por vezes estava rodeada de muitas pessoas que não as minhas e continuava com a mesma sensação de solidão.

Chegou o dia, não sei quando, como ou porquê, em que me apercebi que esse sentimento de solidão não tinha qualquer sentido pois bastava estar bem comigo que conseguiria estar bem com os outros.

Melhor! Primeiro tinha que estar bem com o meu SER para conseguir lidar melhor com todos os outros SERES. Tinha que partir de dentro de mim e não de ajudas exteriores.

É claro que conversar com os outros é bom e importante, mas a constante lamúria cansa qualquer um: aquele que ouve e aquele que fala.

Por mais que nos escondamos atrás da multidão de pessoas com quem lidamos, nas horas chave é a própria pessoa que conta, só e apenas.

Quando alguém morre, é a nossa própria dor que nos invade. Quando alcançamos aquele objetivo tão desejado, é a nossa felicidade que nos preenche. Quando vemos alguma desgraça, é a nossa impressão que nos choca. Quando nos é dado um sorriso sincero, é com o nosso sorriso sincero que retribuímos.

Não somos ilhas isoladas, mas somos seres únicos, cada um de nós, que só se encaixa em alguém ou alguma coisa se a nossa forma de ser estiver bem definida.

 

Sónia Abrantes

 

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21.11.14

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Caminham apressadas com destinos que desconheço. Não sei quem são nem para onde vão e o que as motiva ou derruba, mas hoje interesso-me por elas e quero conhece-las. Hoje, sinto saudade das pessoas, gosto delas e quero deixar-me afetar, que é o mesmo que dizer, criar afetos. Misturo-me com a multidão, preciso de proximidade física com o mundo. Não sabem que as observo do alto das minhas janelas, estas janelas que me apresentam o mundo e me ligam a ele, os meus olhos. Pensando-se anónimas, deixam cair as defesas e o resguardo de que se revestem para parecerem ser o que o mundo quer que elas sejam. E assim, autenticas e vulneráveis, dispo-lhes a alma e conheço-lhes as suas fraquezas e fragilidades. E como são frágeis todas elas! Tanto, que me enchem de ternura.

Para onde se dirigem com tanta pressa? Aparecem lá ao fundo, no início da rua, caminham para mim mas olham para o lado, alguma coisa lhes chamou a atenção, talvez a montra com as novidades da estação. Um olhar em frente na minha direção, parece que vão dirigir-me a palavra, mas não, passam sem ver-me, não se interessam por mim. De resto, não parecem interessar-se por ninguém, nem mesmo pelo mendigo que mostra as mazelas e estende a mão a pedir esmola. Desaparecem no fim da rua. Deixaram de pertencer ao meu universo visual sem me afetarem.

Outras se aproximam. Vêm num passo lento e livre, tão livre que a rua lhes pertence, ocupam-na de um lado ao outro. Falam alto e riem, parecem divertidas. Quero a atenção delas, fazer parte desse grupo que irradia alegria. Vão avançando sem reparar em mim, barro-lhes o caminho, procuro um frente-a-frente com o olhar, mas elas contornam-me com a mesma indiferença com que contornam os bancos ao longo do passeio.

Muito perto, na esplanada povoada de gente descontraída, dois homens de meia idade dão-se ares de intelectuais. Com gestos largos expõem os seus pontos de vistas, ou talvez não, e os pontos de vista sejam de algum ilustre. Impressionam-se declamando um poema ou citando frases feitas tão sabiamente construídas e tão assertivas que nos identificamos de imediato naquele resumo inteligente de palavras. O diálogo absorve-os, não reparam que os observo e mesmo que reparassem não me aceitariam a menos que vissem em mim uma oportunidade de brilharem e fazerem mais uma admiradora. Tanto saber e cultura assustam-me e afasto-me.

Caminho pela rua e cruzo-me com um casal que discute. Pronuncio palavras apaziguadoras mas estão demasiado zangados para que possam ouvir-me.

Na montra dos eletrodomésticos um ecrã gigante mostra dois homens, um de pé, vestido de negro, cara tapada. Fala para a câmara ao mesmo tempo que encosta uma navalha no pescoço de outro, que, ajoelhado, mantém a dignidade possível de quem sabe que vai morrer em segundos. Não quero ficar ali, agonia-me tamanha crueldade.

Sentado nos degraus de uma casa, um jovem esconde a cara entre as mãos. Aproximo-me e vejo-lhe lágrimas que correm por um rosto triste. Ofereço ajuda. Espantado responde que não há nada que eu possa fazer para o ajudar e de imediato se levanta e parte. Sento-me no lugar que deixou vago e olho em volta, ninguém me vê ou quer ver, o que é a mesma coisa em sentido prático.

Fecho as janelas, as minhas janelas, desligo-me do mundo e regresso a casa com saudade das pessoas.

 

Cidália Carvalho

 

 

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19.11.14

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Era uma vez uma Pessoa. E a Pessoa tinha sonhos, objetivos, ideais.

Uma forma de ser e de estar. Nem certa nem errada. Apenas existia e era assim, sem presunções ou superlativos.

 

Era uma vez um Mundo a transbordar de portas fechadas, de incompreensão e desrespeito. Um Mundo que não aceitava, que não permitia, que só exigia.

 

E a Pessoa no meio do Mundo. No fundo do Mundo. Esmagada pelo Mundo.

 

E o Mundo rebolando redondo, inconveniente, arrogante!

 

E a Pessoa cansada. Um cansaço tão grande, que é maior do que ela. Maior do que a fome que sente, do frio que sente, do sono que sente. Um sono de quem não quer estar acordado.

 

Constatada a insustentável incompatibilidade, muda a Pessoa ou muda o Mundo?

 

(suspiro) O dia acaba. Outro logo amanhece. E a Pessoa vai. Com o Mundo.

 

Sandrapep

 

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17.11.14

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Quando iniciei a leitura da obra “Natureza e espírito – uma unidade necessária”, de Gregory Bateson, já há alguns anos, tudo me parecia estranho, no sentido em que não percebi logo para que me interessavam as anémonas-do-mar, as florestas, as estrelas-do-mar, a física, a cibernética e a matemática, para um fenómeno que me propunha estudar mais profundamente: a educação para a saúde.

De um momento para o outro vi-me a fazer abduções, no conceito mais puro de Bateson, que me trouxeram alguma lucidez. Percebi que Bateson é extraordinário na forma como liga (abstratamente e concretamente) todos os seres vivos entre si a partir de um ser vivo concreto. O padrão que liga permite ter uma visão estética das coisas e do mundo, enfrentando-os com reconhecimento e empatia, encarando-os numa perspetiva ampla e sistematicamente relacional. Para Bateson, o comportamento humano é analisado sob o ponto de vista sistémico e relacional, atendendo à perspetiva de causalidade circular, usando o mecanismo desta para perceber o comportamento e as relações do homem com o mundo e no mundo. Bateson entende a “coisa viva” em interação contínua com o mundo. A coisa viva não é resistente à mudança: ou corrige a mudança, ou se modifica para ir de encontro à mudança, ou incorpora a mudança em si própria.

Pedindo ajuda a Bateson, diria que o UM liga-se ao OUTRO e este ao OUTRO… e este ao MUNDO através do padrão que liga, sempre numa perspetiva ampla e sistematicamente relacional, tornando-se preciso relacionar as coisas num MUNDO onde o UM apenas faz parte dele e, chamar a esta relação uma visão estética é verdadeiramente necessário. Parece ser neste contexto que o conhecimento, a educação e a aprendizagem (todo o tipo de aprendizagem) acontecem. Eu concordo com Bateson! (pensando que percebi o pensamento de Bateson até onde a minha mente (espírito?) me permitiu).

 

Ermelinda Macedo

 

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12.11.14

 

João acomodou-se na cadeira, esticou as pernas, levantou os braços à altura da cabeça e uniu as mãos encostando-as à nuca. Fixou o olhar na janela e refletiu em voz alta:

- Estás então a dizer que essa civilização, que existiu na Europa há muitas centenas de anos, extinguiu-se como consequência das opções dos seus próprios políticos?

Rita continuou no tema, agora com maior entusiasmo:

- Sim, eles pensaram e colocaram em prática, de forma deliberada, uma receita que consideravam mágica para se perpetuarem no poder, a qual consistia em criar condições para que nenhuma contestação surgisse no seu povo, o povo que os elegia, que progressivamente foi ficando mais indiferente, com cada vez menor intervenção política, cívica e social, deixando-os à vontade para fazerem tudo o que entendiam, preocupados apenas em agradar àqueles que detinham o poder económico internacional, que à época era designado de forma genérica por “os mercados”. As transformações sociais assim provocadas foram de tal natureza e de tal intensidade, que a sociedade foi morrendo, morrendo, até que se extinguiu por si só, sem intervenções externas diretas. E conseguiram-no em menos de um século.

João procurou um pouco na sua memória:

- Houve civilizações, povos, bem mais antigos do que esse, que foram extintos mas por intervenção direta exterior, ou porque algo mudou no que os envolvia, de forma determinante. Esse, autoextingiu-se. Como é isso possível? O impulso natural não é o da autopreservação?

Rita retomou:

- Sim, esse é o impulso natural, mas neste caso, que é um caso de estudo por ser único e brutal, tudo foi pensado para contrariar a natureza tendo, no centro da estratégia, a eliminação progressiva, mas acelerada e muito eficaz, da capacidade individual e colectiva de questionar, de contestar, de criar.

João estava perplexo e perguntou:

- Mas Rita, como o fizeram?

- Os políticos atacaram, essencialmente, a cultura e a educação. Justificando as suas escolhas com sucessivas crises financeiras e económicas, e pela vontade de ir ao encontro das necessidades e do gosto do povo, foram cortando todos os apoios financeiros e sobretudo os apoios políticos à cultura, apagando sistematicamente todo o património construído ao longo do tempo e toda a criatividade, permitindo apenas o desenvolvimento de um fenómeno comunicacional da época, designado por televisão ao gosto das audiências, muito alegre e festivo mas destituído de qualquer conteúdo. Na educação colocaram em prática um processo de cortes em tudo semelhante ao da cultura, e por outro lado, colocando em prática ideias na aparência muito modernas e progressistas, criaram uma instabilidade gigantesca no sistema, com alterações curriculares permanentes e empobrecedoras, investiram na descredibilização total dos professores, chamaram os pais a uma suposta participação no processo educativo escolar, mas que de facto apenas visava empolgá-los no envolvimento em questões menores, de modo a que deles não surgisse crítica ou contestação. Nas alterações curriculares a preocupação maior foi a de reduzir o conhecimento até ao nível do patético, dificultando o estudo da matemática e da língua – e esse povo tinha uma língua própria, com raízes antigas, que era identificada como a sua própria pátria. Sem domínio da língua, o pensamento das crianças e jovens tornou-se elementar, pobre e frágil, o seu intelecto definhou. Sem a matemática, o progresso, a evolução e a ciência tornaram-se impossíveis. Houve mesmo áreas do conhecimento completamente interditas, pois que, alegando falta de saídas profissionais, ficaram vazias e desapareceram. Mitigaram o rigor e a exigência, tendo eliminado a prestação de provas, para que todos tivessem aproveitamento e sucesso escolar, mesmo sendo galopantes os níveis de ignorância e de incapacidade. Para iludir a perda efetiva do conhecimento, criaram mais graus académicos e facilitaram a forma de acesso e o esforço necessário à sua obtenção. Rapidamente os que estudavam e assim adquiriam conhecimento, perceberam que não tinham qualquer vantagem com essa atitude, pois trabalhassem ou não, o resultado era sempre o mesmo, pelo que abandonaram o esforço e seguiram a atitude dos seus pares. Em termos sociais, elevaram as questões de género a um ponto tal que as necessidades de afirmação entre homens e mulheres fizeram esquecer a família – o centro da civilização e da sociedade. As crianças deixaram de nascer e a população começou a diminuir. Em termos eleitorais conseguiram assim assegurar que os dois principais partidos fossem alternando no poder, sem que ninguém entendesse bem porquê. Já quase ninguém se envolvia no debate político nem no voto. As pessoas detestavam os políticos e estes acabaram por constituir um pequeno grupo fechado que vivia isolado da sociedade, desfrutando de significativos benefícios numa economia completamente dominada por interesses de outros países. A saúde mental daquele povo começou a refletir, de forma brutal, a forma como as pessoas vivam, mas também essa área foi abandonada pelo poder político, como se não fosse importante. Aumentaram assim as depressões e outras patologias, as autolesões, os suicídios, num quadro de pobreza crescente.

Após uma pausa, João voltou:

- Terrível!! E não surgiu quem se opusesse, quem chamasse a atenção para um caminho que poderia ser diferente, para um regresso a uma organização normal, razoável e humana da sociedade?

Rita explicou:

- A receita foi produzindo o seu efeito, intensificado à medida que o tempo decorria, pelo que as contestações foram diminuindo até desaparecerem. Os mais inconformados, ou mais irreverentes, ou mais desesperados (quem sabe?) foram saindo do país e fixando-se noutras paragens, aliás fortemente incentivados pelos políticos, na ânsia de acelerarem o processo. A vida naquela sociedade tornou-se uma experiência penosa e insuportável. Aquele povo, cheio de história, de cultura e de tradição, acabou por desaparecer, por se autoextinguir, tendo o seu território sido tomado e repartido pelos povos que durante o processo foram tomando posições na sua economia.

Após um longo silêncio João voltou:

- Muito interessante mas terrível. Felizmente não houve réplicas.

E regressou ao silêncio, tentando construir na sua cabeça todo aquele processo destrutivo, toda aquela receita devastadora. Por isso não deu conta de Rita sair da sala.

 

Fernando Couto

 

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10.11.14

 

A D. Clara tinha quase 90 anos. Tinha uma família grande, alguns filhos, muitos netos, mas vivia sozinha. Tinha o seu quintal, entretinha-se a tomar conta de alguns legumes que cultivava, de algumas flores que plantava e de alguns gatos que por lá passavam em jeito de visita. Os filhos e os netos iam muitas vezes lá a casa falar com ela, ver como estava, fazer-lhe companhia, saber dela. Sempre que lá iam a D. Clara fazia aquele maravilhoso bolo de maçã que toda a gente na família adorava e que era sinónimo de festa e de convívio – não havia reunião de família em que não estivesse aquele bolo na mesa e aquele cheirinho pela casa fora e lá fora na rua!

Ultimamente, as visitas à D. Clara eram mais raras, menos frequentes. Vivia longe, era caro ir até lá, há que reduzir despesas e cortar nos gastos. Os filhos e os netos continuavam a fazer-lhe visitas, mas muito mais espaçadas no tempo.

Entretanto, a D. Clara começou a sentir-se cansada, sem ânimo, triste e de certa forma angustiada. Não sabia bem porquê. Estaria doente? Seria da idade? Seria dos anos que começam a pesar? Seria saudades dos filhos e dos netos? Seria do tempo? Todas estas questões, foi colocá-las a um médico que conversou com ela, que a examinou e que no final lhe receitou alguns medicamentos que a fariam sentir-se melhor.

A D. Clara veio com a receita na mão, pelo caminho fora. Nunca tinha tomado remédios na vida dela, nunca precisara. Será que o remédio era render-se a eles? Foi até à farmácia, mas a receita era extensa, eram tantos medicamentos e tão caros que só comprou metade! “Não preciso de tanta coisa, isto há de passar!”. Levou apenas dois ou três medicamentos consigo pelo caminho para casa. Seguiu a receita do médico e tomou-os, mas não parecia melhorar. Continuava cansada, desanimada, triste e agora com muito sono! Já nem lhe apetecia ir ao quintal, só queria ficar na cama.

Os filhos e os netos continuavam a visitá-la, mas já não era a mesma coisa. Já não viam a casa de portas abertas e de quintal à mostra. Já não conseguiam que as conversas fossem longas e a presença alegre. E já não havia o bolo, o delicioso bolo de maçã que perfumava a casa e aliciava a rua. Festa já não era sinónimo daquela casa, convívio já não era sinónimo daqueles dias de visita.

Até que para uma das netas a solução surgiu clara como água! Reuniu alguns primos e foram visitar a avó de surpresa. Chegaram, deram-lhe um beijinho algumas palavras e foram para a cozinha. Ligaram o forno, prepararam a mesa e puseram cá fora as panelas, as formas, o rolo da massa, a batedeira, a varinha mágica, enfim tudo o que seria necessário. Falavam e riam, distribuindo funções e tarefas. Logo depois apareceram os tios com os ingredientes: um trazia a farinha, o outro trazia os ovos, o outro o açúcar e as maçãs. Puseram tudo em cima da mesa e começaram a descascar, a juntar, a bater, a espalhar. Tudo numa grande algazarra porque tanta gente numa cozinha só podia dar nisso – muita conversa, barulho, gargalhadas, confusão… Foi quando a D. Clara apareceu à porta, a ver o que se passava. Que barulheira era aquela? E foi quando viu a cozinha cheia, a mesa toda suja de farinha, de cascas de ovos e de maçã e toda a gente a conversar, a dar palpites, a brincar. “Para o bolo ficar bom, as maçãs têm de ficar acamadas na parte de cima. Assim.” e começou a mostrar como se fazia. Abriram caminho para deixá-la chegar à mesa e com toda a gente à sua volta a ver como era a D. Clara foi colocando as maçãs enroscadas umas nas outras. “Agora experimentem vocês” e cada um foi pondo um pedaço de maçã juntinho a outro até cobrir a massa que estava por baixo. Puseram a forma no forno e todos se sentaram à volta da mesa a conversar e a contar trivialidades ou histórias enquanto esperavam. Um cheirinho começou a espalhar-se pela casa e pouco depois saiu para a rua.

Serviram o bolo com chá, sumos e café. Todos à mesa a saborear aquele bolo de família.

A casa estava cheia a julgar pelo barulho e pelos sons, o bolo continuava delicioso a julgar pelas exclamações e elogios e a D. Clara estava muito melhor a julgar pelo sorriso enroscado na cara e pelo calor que sentiu em sua casa e que há muito não aparecia!    

 

Patrícia Leitão

 

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7.11.14

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Não existe magia sem audiência. De nada serve um palco, um dom ou um artista sem os devidos espetadores participantes. Mesmo daqueles que se limitam a congratular as “evidências visíveis” com palmas.

Não existem receitas sem comensais. De nada serve um fogão, um dom ou uma lista, sem os devidos apetites participantes. Mesmo daqueles que se limitam à dieta sensaborona.

As receitas e a magia precisam de pessoas, de participantes. Logo, as receitas mágicas também precisam. E as pessoas fazem a vida. Em certa medida somos todos convivas, recebidos com agrado por este cicerone universal.

A vida tem então a honra de convidar V. Exas. a participar num magnífico repasto. A hora é agora, com duração prevista menor que 100 anos. Com certeza que uns terão de sair mais cedo que outros... O local é do tamanho do mundo, com continentes de dimensão. Este convite é pessoal, intransmissível e não existe código de vestimenta. As ementas propostas são as mais variadas, dependendo dos mais diferentes fatores. Umas são fastfood, outras gourmet...

Aqui fica uma das minhas favoritas, que muito me tem saciado:

  • O sol quente no quarto
  • O doce beijo da noiva
  • Os abraços dos filhos
  • O cheiro dos seus cabelos
  • A memória dos queridos avós
  • A voz dos pais
  • O amor dos 3 cães
  • A mota na estrada
  • O emprego digno
  • As contas em dia
  • As boas surpresas
  • O pôr-do-sol
  • A presença dos amigos
  • A pele dela antes de adormecer

 

Rui Duarte

 

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5.11.14

HomemZangado.jpg

 

Afinal há ou não receitas mágicas? Vou lendo os artigos sobre o tema e a mensagem mantém-se: Não há receitas mágicas. Muitas ideias bastante interessantes são apresentadas, assim como conceitos e métodos práticos. Gostei particularmente do método sistemático, faseado, para atingir o sucesso, apresentado pelo senhor António Sendi. Eu arrisco e digo: há, de facto, muitas “receitas” que funcionaram e servem diferentes propósitos e objetivos concretizáveis.

Sucintamente, faço uma introdução a uma outra metodologia: a programação neurolinguística. Associados à PNL (programação neurolinguística) surgem nomes como Richard Bandler e John Grinder. Aquela estuda a estrutura subjetiva da experiência. Trata-se de um modelo com várias técnicas que permitem aprendermos a reconhecer a forma como individualmente organizamos o pensamento, entendermos como, consequentemente, conduzimos a nossa vida e como poderemos proceder à reconstrução da forma de pensar, de sentir, agir e comunicar eficientemente.

Os modelos são úteis porque são práticos. Importa organizar e reorganizar a experiência. Interpretar e reinterpretar a mesma.

“O homem é aquilo em que acredita.” Anton Tchekhov. Estamos cientes de que são os valores e o sistema de crenças e convicções os impulsionadores do comportamento e da sua importância na motivação, pois condicionam a comunicação com nós próprios e com os outros. As convicções devem ser conhecidas e reconhecidas e validadas em contexto favorável. Vejamos um exemplo concreto da convicção “a mudança é vida” referida no livro de Gustavo Bertolotto Vallés “Programação Neurolinguística”, de 1997. Esta crença pode ter sido útil na procura de um novo emprego, mais satisfatório, mas não será útil, por exemplo, em conseguir estabilidade profissional ou conjugal. A consciência desta convicção ajudará quando aplicada adequadamente, sendo limitadora ou facilitadora no atingir de objetivos.

A PNL ajudará a modificar a nossa resposta a um estímulo e, consequentemente, o resultado final. Junto o link para o artigo “My Boss Makes Me Angry (or fill in the blank, My _________, Makes Me Angry).”, sobre um caso interessante descrito por Rachel Hott a propósito de um cliente que a procura para uma sessão de coaching e que apresenta queixas relativas ao chefe.

Que palavra poderíamos utilizar em substituição de “Boss”?

 

Ana Teixeira

 

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3.11.14

Fecundacao.jpg

 

Começa de uma maneira que, pelo menos em teoria, sabemos como é, mas na realidade não sabemos bem… óvulos e espermatozoides e ADN e carne e ossos e sangue e células e o nosso corpinho a formar-se milagrosamente num ventre cada vez maior. E depois, saltamos cá para fora, de uma maneira ou de outra, com mais ou menos pompa e circunstância e, se tivermos sorte, temos uns pais babados à nossa espera. E depois seguimos por aí fora.

A receita mágica para saírmos “bem” e, mais importante ainda, sairmo-nos “bem”, isso já é mais complexo, enigmático. Abundam as teorias, mas também as exceções. E a vida nem sempre é meiga e fácil e amiga, pode ser feia e abrutalhada e dececionante.

E vamos fazendo caminho e crescendo, umas vezes com corpos funcionais e dias sorridentes, outras vezes com tudo a correr como não queríamos.

Mas a receita mágica está aqui, nos nossos envólucros de carne e osso com uma mente e um espírito lá dentro. Nem a biologia do fenómeno está clara, mas a magia está à vista em cada um de nós: estamos. Estamos aqui, vivos. A pensar, a sonhar, a andar, a amar, a sorrir, a odiar, a sofrer, a desejar, a realizar… a viver. Estamos. Somos.

Não interessa se o pacote em que viemos é giro ou feio, gordo ou magro, mais ou menos funcional, mais ou menos brilhante, muito carismático ou algo estúpido, lúcido e decidido ou fraco e titubiante, se vemos muito bem ou estamos quase cegos, se corremos a maratona ou nos arrastamos aos tropeções. Não interessa se se degradou, se envelheceu, se lhe passou um carro por cima. Estamos e somos.

Um dia havemos de ir embora. Sobre o que acontece então, ainda mais ignorantes somos. E abundam, jorram, teorias.

Nada disso interessa para esta conversa. Esta é sobre a receita mágica que é vivermos, hoje, aqui, neste preciso momento em que escrevo, neste preciso momento em que alguém lê.

Antes de acabar este nosso breve momento de protagonismo, vivemos. Sentimos o sol quente na pele, abraçámos e beijámos pessoas que amamos, lambemos gelados, saltámos num prado verdejante, bebemos vodka até cair para o lado, tocámos piano, a brisa soprou-nos ao ouvido, tivemos sonhos e pesadelos, jogámos cartas com os amigos, tivemos filhos lindos (só pode), corremos na praia atrás do nosso cão, andámos de barco, nadámos, falámos com muita, muita gente, plantámos árvores, lemos, rimos, fizemos lutas com bolas de neve, conversámos horas infindas pela noite dentro, olhámos para as estrelas, vimos o sol a nascer, chorámos de tristeza, chorámos de felicidade, e dançámos. Dançamos muito, se tivermos sorte.

Destas coisas e de milhões de outras, são feitos os nossos últimos pensamentos. E vamos amá-las a todas, como amámos quem amamos. E vamos ter pena de não termos feito mais.

E é esta a receita mágica: o mistério feliz que somos nós. Corpo e alma, a sorver a sorte de existirmos.

 

Dora Cabral

 

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