31.7.15

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Foto: Hands In Chains – George Hodan

 

Marginalização é um termo pouco claro e, atualmente, de pouco uso corrente. E a margem de onde a(s) pessoa(s) estará(ão) além de, também o é. A palavra remete invariavelmente para o tecido do social e das relações humanas. Assim, desde logo parece complicado balizar o que se compreenderá como o “dentro” e o “fora” de algo que, como sabemos, não se inscreve no domínio do real palpável.

Contudo, facilmente poderemos identificar determinados comportamentos que se categorizariam como marginais. A explicação para tal já terá por base algo mais “sólido”: a legislação em vigor. Curiosamente, enquanto aplicação do termo “marginal”, não é o comportamento de alguém o sujeito referido, mas sim a pessoa que o executa.

Temos então que “marginal” será um determinado elemento constituinte de um grupo, comunidade ou sociedade, que terá empreendido num comportamento passível de atuação das autoridades competentes. Depreendemos assim que o enfoque da “marginalização” deverá estar sob o comportamento e não sobre a pessoa. E isto faz sentido. Veja-se, por exemplo, que no aspeto penal o comportamento na sua constituição global é que é escrutinado. Evidentemente que a pessoa que cometeu o ato nunca poderá ser dissociada do mesmo, mas, a penalização por este sofrida, visa a não repetição do comportamento em si.

De outro modo se poderá falar de automarginalização. Considero que são atos ou comportamentos, persistentes no tempo, que o individuo executa porque invariavelmente o enquadrará como elemento de pertença a algo. Esse algo poderá não se enquadrar num “para lá do limite” ou das leis, mas apenas num modus operandi inscrito numa cultura de diferenciação, exclusão ou provocação. Contudo, para além da intensidade do seu comportamento (e das suas reais consequências) o facto é que corre o risco de ser percepcionado como um marginal. E isso é precisamente o que se quer.

 

Rui Duarte

 

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29.7.15

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Por marginalização entendemos, quase sempre, o sentido alargado da palavra, isto é, o preconceito e a indiferença a que determinado indivíduo, ou determinado grupo, com certas caraterísticas diferentes da sociedade, ou do contexto onde se insere, está sujeito, sendo olhado de soslaio e provocando reações, desde a indiferença até à agressão.

Acontece é que nos esquecemos, ou então não nos apercebemos, daquela marginalização que infligimos a nós próprios. É esta que abordo neste artigo.

A automarginalização reveste-se de vários feitios: impedimo-nos de ir a alguns sítios ou de estar com amigos, porque estamos gordos e todos vão dizer uma piadola, ou porque é demasiado frustrante aparecer nos eventos sociais – mesmo com amigos de sempre – sem uma companhia, ou porque a porcaria do acne chama mais a atenção do que a Casa da Música iluminada. Às vezes, simplesmente não vamos a sítio nenhum porque não queremos que olhem para nós. Porque não queremos que olhem para o nada que nos sentimos. Porque nos anulamos.

Marginalizamos a nossa inteligência e o nosso potencial de seres pensantes, também quando não intervimos em conversas por achar que a nossa opinião não é válida e que os outros é que são brilhantes, ou quando não lutamos por melhores condições no trabalho, por medo de sermos ainda mais ostracizados, mas não nos mexemos para procurar outro emprego, porque a crise-aperta-e-não-se-sabe-o-dia-de-amanhã.

Nos relacionamentos, o cenário não é muito diferente. Muitas vezes mantemo-nos no mesmo grupo de amigos que faz de nós o saco de risada e que feitas as contas nem sequer são assim tão amigos, mas são a companhia que temos e de outro modo, não teríamos com quem conviver, porque fazer novas amizades é complicado.

A automarginalização também acontece nos relacionamentos que se querem amorosos. Quantas vezes um dos elementos do casal sabe que não é amado pelo outro; ao contrário, é visto com indiferença, desprezado, humilhado, traído até, mas deixa-se ficar, mesmo sabendo que cada vez vai ser pior, porque os cacos, às vezes nem com cola – daquela mesmo muito boa – se encaixam. Porque o medo de ficar sozinho é avassalador quando comparado com um relacionamento sem amor ou consideração. E nessa situação, ao menos, vai-se tendo alguma companhia, mais não seja para sair, e é tão complicado o mundo dos afetos… quem é que garante que o próximo, se houver próximo, vai ser melhor.

E então? Chegou a esta parte do artigo sem se identificar com nenhum destes exemplos? Olhe que eu identifico-me com alguns.

Fazemos assim, se não se identifica com nada do que falo aqui, dou-lhe os meus sinceros parabéns. Se eventualmente se revê em qualquer uma destas imagens, ou se consegue através destes exemplos identificar a sua automarginalização (ora aí está um termo bastante feio), então, nesse caso, dou-lhe a minha mão. Acredite que não está sozinho.

 

Ana Martins

 

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27.7.15

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Foto: Fake Tattoo – Shari Weinsheimer

 

No grande livro da nossa vida, os dias que vivemos são escritos em páginas onde definimos aquilo que somos, o que fazemos e como o fazemos.

É nelas que demonstramos que a nossa vontade de fazer mais e melhor define o nosso caráter.

Nestas páginas descrevemos as nossas ações e personalizamos as margens da nossa essência. Quando aquilo que somos, a nossa realidade, a nossa essência é distorcida, estamos, sem querer, a viver numa mentira, numa ilusão ou fantasia. Desconfiguram-se as linhas traçadas por aquilo que é autêntico para nós e acabamos por não conseguir definir a verdadeira autenticidade.

Ao afastarem-nos daquilo que consideramos autêntico, legítimo, verdadeiro, sincero, aqueles que o fazem levam-nos a pensar que agimos de maneira diferente do que nos impele a nossa consciência. Acabamos por nos deixar influenciar por opiniões que nos levam a crer que aquilo que somos vai contra o que é definido como “normal”, ao padrão do que é aceitável, não só por nós mesmos mas pela sociedade.

É um afastamento forçado que confunde a autenticidade, a unidade da nossa essência e contrapõe as premissas legítimas da sociedade de que todos somos iguais. E, desta forma, acabamos por viver afastados daqueles padrões e caraterísticas que muitos consideram normais e o reflexo da verdade certa. Caraterísticas como cor de pele, estatuto social, etnia, condições físicas e psicológicas, que muitas vezes são díspares mas não menos autênticas.

Somos marginalizados pelos gostos pessoais, olhados de lado pelo piercing no lábio, postos de parte pelo corpo coberto de tatuagens… fecham-nos a porta a oportunidades por uma deficiência, queimam-nos vivos pela crença… fazem troça de quem é diferente, afastam quem se comporta… gozam, insultam, matam, ferem, magoam… marcam.

Cabe-nos a nós sarar as feridas… disfarçar as marcas… marginalizados??? Só e apenas se o deixarmos… não somos cópias baratas do que está na moda… não somos cópias baratas do perfeito e convencional… somos feitos de defeitos, de feitios, virtudes, traços, de personalidades… não somos cópias baratas, somos o original.

 

P. Melo

 

 

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24.7.15

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Foto: Man Looking Down – Максим Кукушкин

 

Quando a marginalização se herda, a circunstância de exclusão é um cordão umbilical bem mais difícil de cortar do que o físico que, por si só, cai.

São inúmeros os estudos que concluem que as famílias apresentam um padrão que se perpétua de geração em geração e que romper esse padrão é uma realidade pouco comum.

Se até há pouco tempo, a marginalização era uma circunstância associada a um tecido sociofamiliar económica e culturalmente desfavorecido, hoje temos essa mesma circunstância a expandir-se para tecidos sociofamiliares económica e culturalmente mais desafogados. É uma consequência do empobrecimento galopante da população!

Ora, se havia um grupo marginalizado por viver num ambiente onde a carência gerava atitudes de revolta visíveis no desinvestimento escolar e cultural, na prática de delitos e na recusa de valores de vida saudáveis, agora há um grupo marginalizado por viver num ambiente onde a carência gera atitudes de uma revolta escondida, feita de ressentimentos causadores de uma angústia pela impossibilidade de se entregar ao culto de uma aparência que já não é possível sustentar.

Nos dois casos, a experiência da exclusão obriga a uma reflexão muito, muito profunda e cuidada sobre a realidade política mundial. A sociedade adoece a cada década e a sociedade é cada cidadão, ser de individualidade e dignidade!

Talvez valha a pena regressar à origem da palavra política, na verdade ela contém uma dica preciosa para essa reflexão que urge fazer de forma continuada e por todos.

Política provém de pólis, cidade, e o cidadão que vive na cidade é político.

Fica claro que ao político, ao cidadão, ao ser de individualidade e dignidade, cabe o dever de construir a sua cidade, pelo que lhe é exigido um olhar permanente e crítico, uma atenção comprometida e uma procura responsável de um amanhã saudável e harmonioso. Jamais, sob o risco de se oferecer a uma destruição lenta, poderá depositar nas mãos de outros a escolha das respostas ajustadas à construção de um mundo melhor. Jamais, sob o risco de se deixar iludir e ludibriar, poderá alienar-se da sua realidade, repousando na convicção de que alguém promoverá a construção de um mundo melhor.

O mundo melhor constrói-se com as políticas dos políticos que somos todos nós e não um “eles, os políticos” e é imperioso que cada um assuma esta sua dimensão: a de ser político! Não se esquece que há um Lugar Institucional, o do Poder Político, mas lembra-se que esse lugar é ocupado por nós porque votamos. Cada ser individual deve cumprir-se nesta sua dimensão para poder preservar um valor inalienável do ser humano que é a DIGNIDADE. Nisto reside a cura para esta doença que ataca as sociedades: a marginalização.

Quando a marginalização se herda, a circunstância de exclusão é um cordão umbilical bem mais difícil de cortar do que o físico que, por si só, cai. A experiência da exclusão perpetuar-se-á se cada indivíduo não assumir de forma plena e permanente a dimensão cívica, política de que está imbuído desde a nascença pela sua condição humana.

A marginalização termina no exato momento em que a pessoa abandona as margens da alienação e do amorfismo e se assume ser de pensamento crítico, vontade e sonho que é o que realmente pode derrubar todas as margens que separam e aniquilam.

 

Sónia Coimbra

 

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22.7.15

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Foto: Sem título – Mairani Cuevas

 

Senti-me à margem no infantário, quando me batiam… Senti-me à margem naquela vez em que tive um ataque cerrado dos piolhos à minha cabeça e me cortaram o cabelo comprido que tanto adorava… Senti-me à margem quando me gozavam e insultavam só por não querer fumar… Senti-me à margem quando tive num aniversário no qual não conhecia ninguém e ninguém falou comigo… Senti-me à margem quando usei um colete para a coluna, durante um ano, que me tirava o fôlego, a mobilidade e o sex appeal da adolescência… Senti-me à margem no estágio, quando escrevi a minha verdade num relatório, afirmando que ninguém apoiou as alunas, e fui esmagada numa reunião por ser verdadeira demais e querer salvar o mundo… Tantas vezes me senti posta de parte… Quem nunca se sentiu assim? Quando as circunstâncias nos marginalizam, talvez por um erro estranho da física, nos estejam a empurrar precisamente para o Nosso Centro. Para nos sentirmos Connosco, em Nós, temos que olhar de fora.

Estar à margem pode, muitas vezes, indicar que estamos no caminho certo para nos encontrarmos.

 

Sara Almeida

 

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20.7.15

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Foto: Man Best Friend - Linnaea Mallette

 

Passaram-se semanas, não sei precisar quantas, desde que a vida como a conhecia ruiu. Perco a noção do tempo, tem-me acontecido amiúde. Fico simplesmente assim, como estou agora, sentado nesta cadeira durante horas, sem culpa nem angústia. Vivo um dia atrás do outro, neste pós algo que mudou a minha história, confuso e desorientado. Escondo-me no anonimato da minha condição de vida, fico até aliviado se se esquecerem que eu existo. Ainda não sei explicar como se sobrevive a acontecimentos catastróficos mas se sucumbe à dor da alma. Como é isso possível, perguntam-me alguns? Como pode um coração deixar de bater, como pode um cérebro entrar em colapso porque um homem já sofreu mais do que alguma vez achou ser possível? Um homem não chora, não deprime. Nem que perca os filhos na vida e perceba o que é ter o coração partido sem precisar de nenhuma arma.

Sinto-me um idiota por ter ousado acreditar que lutaria contra marés e sairia sempre vencedor. Por que raio não percebi isto mais cedo? Porque me sujeitei a todas estas ondulações, mesmo quando se tornou óbvio que seria esta a história da minha vida? Mudam as circunstâncias, avança o tempo no relógio, mas não deponho armas, não respiro. Não durmo tranquilo. Apesar da luta constante, não estou mais forte. Na verdade, nunca tive tanto medo como tenho agora. Não consigo correr nem sonhar. Não consigo fazer planos, concentrar-me em coisa nenhuma, nem nas coisas que sempre me deram muito prazer fazer. Não quero estar com ninguém; às vezes, não me entendo o suficiente para falar sobre mim próprio; outras vezes, sei que não querem realmente ouvir o que tenho para dizer. Tão pouco confesso que não consigo perdoar-me por não ter sabido poupar-me a tanto infortúnio. Sinto-me tão estúpido…

Ontem percebi que nada vai mudar na minha vida. Não consigo viver com o coração partido e já não me faz sentido caminhar em qualquer outra direção. Não quero recomeçar do zero, ou fingir que estou bem, pela enésima vez. Há coisas das quais não consigo recuperar, sinto-o claramente. Os meus remendos fazem de mim uma aberração, não quero isto como agasalho nos invernos ainda por vir.

Não escolhi viver mas escolho partir. Escolho antecipar aquilo que todos temos como certo mas que pensamos ludibriar, com sumos detox e fórmulas de rejuvenescimento, durante anos a fio. Não quero adiar coisa nenhuma. Não quero esperar pela morte num dia de velhice e cansaço e lembrar-me do dia de hoje. Sei que iria lamentar tudo o que me tivesse permitido viver até lá. Não preciso disso. Chega.

Escolho abandonar a margem e colocar a minha jangada no rio. Não quero voltar aqui. Aquilo que perdi, afinal, nunca foi meu. Mas era tudo que o que eu tinha.

 

Alexandra Vaz

 

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17.7.15

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Foto: Turkish Old Men – Vera Kratochvil

 

São histórias dentro da história. Histórias de sonhar, histórias de viver, histórias de imaginar. Sem dúvida, histórias para contar… e para ouvir… com atenção… enquanto é tempo… enquanto há tempo! “As pessoas são sacos vivos com histórias dentro”. Histórias que estão marcadas nos rostos enrugados, nas mãos cansadas, no corpo lento, mas ainda com vontade de se manter ativo. Histórias que, não raras vezes, consciente ou inconscientemente, negligenciamos e marginalizamos, sem saber o porquê, ou, talvez, apenas por puro egoísmo de não lhes dispensarmos o tempo que mereciam. “Velhos são os trapos”. Não! Velhos são os velhos, com todo o direito e mérito por ter atingido esse posto! Sem medo de o ser, sem receio da palavra, ou da conotação que a velhice traz consigo, carregando a herança de anos de experiência. Lidamos mal com a velhice, marginalizamos os nossos velhos. Fazemo-los sentir à margem e esquecemo-nos da sua maior riqueza: a sabedoria e experiência de vida, que - vejam só! - apenas advém precisamente com a idade.

A juventude acaba por ser sobrevalorizada, especialmente numa sociedade em constante inovação e evolução, e cada vez mais individualista. No entanto, juventude não é sinónimo de uma maior vitalidade ou de um saber viver melhor. Há por certo muitas histórias (daquelas de ouvir, enquanto é tempo, enquanto há tempo) de velhos mais ativos e felizes do que os próprios jovens. Julgando eu, mas nada como ouvi-los para saber, que esse saber viver está nas pequenas coisas. A experiência e/ou a velhice dá-lhes essa audácia, não é? Que ainda não temos, ou pelo menos que não é tão apurada.

A velhice não tem de ser algo categorizado como mau. O seu principal valor reflete-se na sabedoria e na experiência acumulada dos olhos que, se calhar, já não veem tão bem, mas que sabem sentir como ninguém. E é essa experiência e sabedoria que os faz viver e escolher melhor e saber. Na roda-viva que é a vida atualmente, onde somos assombrados com o imediato, o novo, o fugaz, sabe bem abrandar o passo e aproveitar o bom da vida, as tais pequenas coisas. E quem melhor do que eles para nos ensinar isso?! Sejam velhos, sem medo de o assumir, sem negar a velhice. Sejam orgulhosamente maduros e experientes e ensinem-nos, aos pouquinhos, a viver. Do alto do vosso posto, obtido com mérito, partilhem connosco a vossa sabedoria, as vossas histórias. Ah, as histórias… As histórias de contar merecem sempre ser partilhadas. As vossas são: partilhem-nas.

 

Sandra Sousa

 

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15.7.15

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Foto: Child And Phone – George Hodan

 

Foi buscar este textinho algures à Internet, é claro, e possivelmente está a lê-lo no seu telefone ou no tablet, sem fios, aproveitando uma pausa, no transporte público. O mais provável é que esteja a fazê-lo em Portugal, mas pode estar algures na Europa, em África… Pois, cada vez mais de nós, em qualquer lugar, temos acesso à informação e somos inseridos na economia global. É isso: globalização!

Acolhemo-nos nesta cada vez maior massa humana que vive na economia global, com acesso à Internet e que tem acesso - como nunca teve antes, nem se supunha que pudesse vir a ter - à informação duma forma vasta e praticamente imediata. Acontece algo na Indonésia, no Chile, em Nova Iorque, São Petersburgo, Pretória e, quase que instantaneamente, todos sabemos, vemos imagens, lemos comentários, damos opiniões. Pode ser uma catástrofe natural, um acidente, um atentado, uma separação de um casal mais ou menos mediático, ou o que aconteceu a um animal. Uma hora depois, no dia seguinte, já é outra coisa e mais outra. Aquilo que tanto nos impressionou e de que todos falávamos, já está no sótão poeirento da memória, perdeu toda a importância…

Não temos tempo para gerir, filtrar e consolidar tamanho caudal de informação.

Globalização, não é? Pois é… e não está aqui também um lastimável fator de marginalização que, sem darmos conta, nos manipula? Esta onda, uma autêntica vaga de informação, de que praticamente só temos capacidade para ler “as gordas”, que não temos condições para enquadrar, que facilmente deturpamos, arrasta-nos, quais algas desenraizadas, vagando num oceano em tormenta. E então, de repente, as redes sociais tornam-se quase que a fonte única de informação, toda a gente vê e lê a mesma coisa, vê as mesmas imagens, repetidas até à náusea. A opinião tende a tornar-se única, ai de quem não alinhe pelo politicamente correto ditatorial, que agora é assim e amanhã pode ser o seu contrário.

Quem não “surfar” esta vaga do politicamente correto e da opinião unânime e que pense pela sua cabeça, pode tornar-se rapidamente num marginal, alguém estranho, esquisito, a ostracizar.


Jorge Saraiva

 

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13.7.15

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Foto: The Little Mermaid – Eleanor Nelson

 

Olhou-a de soslaio. Sentiu o ar de desprezo com que a observava. Nada tinha feito, apenas limitar-se a ser diferente de todos os restantes. Nada que tivesse feito para que fosse, no fundo, diferente. Apenas, nascera dessa forma. Diferente. Diferente em maneira de ser. Em forma. Em tamanho. Em cor. Não em sangue, ossos, matéria.

Não compreendia como poderia, à partida, sem conhecimento prévio, julgá-la, de tal forma que a única coisa que poderia sentir era vontade de desaparecer. Correr dali para fora, para não sentir mais aquele desprezo percorre-lhe a espinha dorsal.

Não tinha quem a defendesse. Não tinha quem a apoiasse. Apenas a si. Mas não se sentia capaz de fazer frente a todos aqueles olhares, especialmente àquele.
Não sabia porque se sentia assim. Por que raio se sentia tão ferida apenas com um olhar.

Virou as costas. Mais uma vez isolada do mundo. Olhou o oceano agreste. O céu estava mais cinzento do que carvão. Sentia no ar carregado mais compaixão que os seres vivos que a rodeavam. Desfez as lágrimas, tal como as ondas rebentam na areia. Ao longe viu trovejar. Parecia apenas o seu próprio coração. Não aguentou mais e apenas chorou. Tal trovoada, com toda a sua intempérie.

Era apenas uma rapariga com raízes diferentes. Nada mais. Mas, parecia que vinha de outro planeta. Ali sentia-se à margem de todos. Principalmente quando a olhavam daquela forma. Como se fosse um mutante ou algo assim.

Na margem, apenas podia contemplar como os seres humanos podiam ser tão cruéis. Como podiam preferir o ódio, ao conhecimento. À descoberta. Como poderiam sempre achar que estavam acima da diferença, como se eles próprios não fossem diferença também.

Erguiam-se, assim, tantas, mas tantas paredes. Derrubavam-se tantas pontes. Perdiam-se tantas oportunidades.

Nem ela conseguia ver para além daquele olhar. Apenas frealdade. Mas porquê? Porquê esse desprezo? Não conseguia compreender. Nunca o sentira noutras paragens. Mas agora estava entregue apenas a esse isolamento. Junto deles, sentia-se uma ilha. Abandonada. Que ninguém queria jamais acercar-se. Como se estivesse contaminada. Só podia ser vista de longe, não fosse o risco de se perderem ali para sempre.

Nessa margem sentia, por vezes, vontade de se entregar ao mar. Como se este fosse o seu único amigo e no fim de contas, o único sentido para a sua existência. Perder-se no mar. Findar-se ali. Existir em forma de sal dissolvido em água. A única matéria nas redondezas que a compreendia. Ao contrário dos que da mesma matéria eram feitos. Nas suas ondas, ora revoltas, ora calmas, sentia-se de igual para igual.

Sempre que se acercava do mar, não era mais ilha. Queria ser oceano.

Passaram-se mais dias após o incidente do olhar. De repente, ao virar uma esquina, esbarrou-se, literalmente, com a mulher do olhar frio e cruel. Tocaram-se, por engano do destino. Sentiu um arrepio quando percebeu que se tratava da mesma pessoa. O olhar dela era agora de espanto. Imaginava que o espanto era pelo facto de por se terem tocado, a mulher não estava contaminada. Pediu desculpa pelo incidente, mesmo se mais uma vez a culpa não residia em si. Fora apenas um incidente. Tal como não se vê para além da aparência, não se pode ver para além de uma esquina.

A mulher balbuciou. Quase que engasgada. No entretanto, a rapariga sorriu-lhe timidamente. Não queria ser parte do mesmo gelo. A sua essência era líquida, não gelada. A mulher não sabia como reagir. Limitou-se a baixar os olhos e a partir. Sentiu-se estranha. Estiveram tão perto, tão mais perto do que a última vez que as suas almas se haviam cruzado. Mas, mesmo assim, sempre separadas. O que poderia provocar tal distância? As diferenças? Talvez se estivessem perto, percebessem o quão as diferenças podem ser menores do que as semelhanças.

No entanto, o mar parecia sempre o mais parecido a si. Incrivelmente.

Deixou-se ficar por ali, a ver o mar fundir-se com o horizonte, como se entre céu e mar não houvesse diferenças, mas fossem apenas um só. Embora fossem matérias diferentes, ou até a mesma, em diferentes estados, podiam contemplar-se, sem frieza, apenas com entrega e estar, constantemente, perto, embora tão longe entre si.

 

Cecília Pinto

 

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10.7.15

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Não há muito tempo ouvi falar pela primeira vez da Casa SOL, uma casa que acolhe crianças de projenitores seropositivos. A Casa SOL não é como uma instituição tradicional mas antes como uma família – uma família unida, forte e confiante. Frequentemente, pessoas com este tipo de doenças – ainda que crianças que nasceram já doentes – são discriminadas e colocadas à margem. No entanto, pelo que ouvi da própria voz dos jovens de que falo, a vida que conhecem não é assim.

A Casa SOL foi pioneira em diversos aspetos da sua filosofia. Se exigiu esforço e muito trabalho? Certamente. Mas trouxe também enormes recompensas. Como crianças seropositivas que viveram toda a vida dentro da realidade de medicação constante, visitas a hospitais frequentes e cuidado rigoroso com a dieta e estilo de vida, poderiam ter-se sentido marginalizadas, postas de parte. Todavia, isso não aconteceu.

Segundo o testemunho que ouvi, a consciência, conhecimento e confiança tiveram um papel importante neste aspeto. Isto é: uma vez que, desde sempre, conheceram a doença que tinham assim como todos os cuidados e deveres a ela associados, não precisavam de ter receio e puderam transmitir esta mesma segurança àqueles que se cruzaram com eles ao longo da vida. Amigos, colegas, professores – sem medo, com confiança, integraram-nos em vez de os excluir.

Há uma tendência para afastar o que é diferente. Por medo, pelo receio do desconhecido. Parece-me que é também partindo desta tendência que tanta gente é marginalizada. Pela pobreza, por doenças ou deficiências – mas quando se ultrapassa a diferença, todos somos seres humanos. Trabalhando na compreensão do que nos é estranho, trabalhamos também na aproximação. Curando o medo e o receio (que, por vezes, nem são dos outros mas de algo que eles despertam em nós próprios), poderemos ir curando as feridas de marginalização da sociedade.

 

Isabel Pinto

 

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8.7.15

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Foto: Limitar - Tania Maria Cabrera

 

Será errado pensar que há limites para tudo?

Há limites bem definidos num campo de futebol, tal como há na circulação das estradas.

Mas haverá limites para amarmos? E para odiarmos?

Quando devemos considerar que determinado comportamento está a ultrapassar os limites aceitáveis? Depende das regras do grupo em que esse comportamento acontece…

Nas relações pessoais os limites não são linhas estanques. Viver à margem dos limites ditos normais é ser considerado marginal, pois fazemos coisas que saem fora do padrão normal.

Será isto justo?

Por exemplo, quando mudamos de local de residência ou trabalho, com regras sociais e culturais completamente diferentes das que estávamos habituados, o normal é termos comportamento e atitudes que são estranhas para esse novo grupo.

Serem estranhas poderá não ser estar errado, apenas desadequado para a nova realidade.

Claro que isto não é desculpa para roubar, matar, violar, desrespeitar… Mas a realidade é que há pessoas que nascem e crescem nessa realidade e não conseguem, porque pura e simplesmente não sabem pois ninguém lhes ensinou, distinguir o que está correto ou incorreto, eticamente.

Ética… Tão pouco falada mas a base de tudo…

O segredo deverá estar em considerar limites mas saber explicá-los, saber vivê-los.

 

Sónia Abrantes

 

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6.7.15

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Foto: Thinking Woman – George Hodan

 

Ela soube do evento no próprio dia. “Hei!, é verdade, esquecemo-nos de te avisar, mas hoje realiza-se o jantar anual da empresa. E, claro, queremos que vás. É importante cobrir o evento, fotografar, ou fazer um vídeo. Podes levar a tua máquina fotográfica? Encontramo-nos logo!”

Por uns largos instantes, ela ficou sem saber o que dizer. Estava surpresa. Com tudo. O esquecimento, o convite, o propósito do convite.

Ela já sonhara com um evento destes algumas vezes. Com aquele dia em que participaria numa atividade informal, em que pudesse conhecer melhor os colegas, dar-se a conhecer, de forma descontraída. E até poder despir aquela “capa” que usava diariamente para se proteger do desconhecido.

“E logo hoje, que eu tenho dentista!” Não é que o dentista fosse importante. Mas aquilo que concebera para aquele momento não estava a corresponder… naturalmente, sempre a fantasiar aquilo que não existia! Francamente!

Ligou para o dentista e adiou a consulta. E, de mansinho, foi perscrutando os colegas, entusiasmados com o jantar. Um pouco timidamente juntou-se ao grupo feminino com quem partilhava o piso de trabalho. Entre risadas e piadas, recordavam-se os anos anteriores, faziam-se prognósticos para a noite.

Ela tentou saber: “ Então, e como é que vocês costumam fazer? Vão ao cabeleireiro, trocam de roupa ou vão diretas daqui para o restaurante?”

“Cabeleireiro? Não! Isto é muito informal; há pessoas que vão diretamente daqui, outras que vão a casa. Mas ninguém se produz nem nada disso!” – afirmou convicta a mais velha daquele grupo de 3.

“Eu cá vou a casa, mas vou deitar-me no sofá até à hora de sair e nem os sapatos vou trocar!” – lançou decidida uma jovem colega.

Num misto de desilusão e alívio correu para casa quando terminou o dia (mais tarde do que o previsto). E no fim até agradeceu o facto de não ter que se produzir para aquela noite, pois entre os miúdos carentes de afeto, o alarme da casa da vizinha a buzinar-lhe os ouvidos e o marido pouco cooperante, ela apenas teve tempo de trocar de colar (o raio do colar que usara até então estava com a presilha avariada e teimara em cair todo o santo dia!).

Ofegante e de máquina em punho, apressou-se a chegar ao local combinado, já com 15 minutos de atraso. Estacionou com facilidade, tentando identificar algum carro conhecido. Entrou no restaurante a correr, mas a pressa era inútil. Tinha sido a primeira a chegar.

Lentamente, as primeiras colegas foram chegando: salto alto, batom, cabelos apanhados… quase não as reconhecia (também, pudera, só trabalhava na empresa há cerca de 6 meses, o que não é tempo suficiente para conhecer alguém!).

Começou a fotografar, consolando-se com a ideia de que ficaria sempre atrás da objetiva. Ao desfile juntaram-se as colegas de piso, igualmente vestidas para a ocasião. E, ao vê-la, soltaram uma gargalhada.

“Então, trocaste de colar? Isso é o quê, uma coleira que o teu marido te pôs para não ires para muito longe?” Ela sorriu e entrou na brincadeira. E jantou, sem despir a “capa”. E depois do jantar, alinhou nas bebidas. Sim, porque era importante registar o momento! E todos posavam para as fotografias, formando grupinhos, cada qual mais animado que o outro.

À medida que a noite ia avançando, aquela alegria que imaginara para aquele momento teimava em não surgir; a descontração também não. Deu por si a não saber o que dizer, por isso foi ficando calada. Sentiu-se mal por estar ali, como se não pertencesse àquele ambiente.

E quando o grupo decidiu rumar a uma discoteca (Ah!, o que ela ansiava por voltar a uma discoteca, após 3 anos de exílio materno!), ela viu ali a oportunidade para se escapar. O novo destino não apresentava condições para se fazer reportagem fotográfica, por isso ela já não ia fazer falta.

Assim, após uma despedida / desculpa cortês, rumou até casa.

Quem sabe, para o ano…

 

Sandrapep

 

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3.7.15

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Foto: Interesting Face – Peter Griffin

 

Oiço o assobio da cana que sobe. Até onde, não sei, mas não sobe o suficiente para eu ver a explosão de luzinhas e cores no limite da sua existência, denunciada por um enorme estrondo. Começa a descida. Poucos a veem, já não tem brilho e perde-se na noite escura. Na descida cruza-se com outra que sobe até ao ponto em que há de explodir e ter o mesmo fim, não sem antes, tal como a anterior, espantar quem ali acorre para ver este festival de luz e cor.

Sempre me maravilhou esta incandescência colorida. Mas não era um fascínio tranquilo o que sentia quando, de olhos postos no céu, via rebentar um e depois outro e ainda outro, até ao momento em que rebentavam todos e muitos, à uma. O céu cobria-se de fumo, o ar cheirava a pólvora e as explosões ensurdeciam-me. Apesar disso, e ainda que com medo de eventuais canas tresmalhadas levasse as mãos à cabeça numa fingida proteção, não desviava o olhar desta explosão de sensações. Soltava exclamações, elegia o efeito mais bonito e as cores mais atrativas, comparava com anos anteriores e no final, o veredito – este ano sim, valeu a pena! Afirmava.

Só, assisto agora ao barulho lá longe, seguido de um pálido clarão roubado no brilho pelos edifícios à frente da minha janela.

Mas quê, estou a queixar-me? Sou mesmo um velho ingrato, sempre a ter pena de si mesmo. É certo que as pernas já não são o que eram mas com tempo e vontade teria ido ver o fogo mais de perto. Os meus filhos insistiram para que eu fosse com eles mas com receio de os atrapalhar decidi ficar em casa. Hoje, como noutras vezes, leio-lhes no rosto a desilusão mas conformam-se e lá vão divertir-se e viver a vida. Dediquei-lhes a minha, trabalhando para que nada lhes faltasse e educando-os com afeto. É com uma alegria imensurável que colho os frutos desse investimento. Respeitam-me e é genuína a preocupação com o meu bem-estar. Sei muito bem o que querem quando, à vez e a pretexto de nada, me entram pela casa dentro e me arrancam a esta sala fria e a esta quietude a que me entrego, por preguiça ou simplesmente para não povoar de vida os dias que me restam. Levam-me até ao jardim. Sentamo-nos naquele banco onde tantas vezes fingia ler quando na verdade os vigiava para que nas suas brincadeiras nada de mal lhes acontecesse. A minha filha nunca gostou de brincar no jardim, ferrou-a uma abelha e as formigas não lhe davam sossego. Os passeios com ela são até à praia, apanhamos um pouco de sol, andamos na marginal e tomamos café na esplanada.

Conheço-os até na maneira como abrem a porta. O mais velho irrompe casa adentro, vai direito à cozinha, abre o frigorífico e reclama pela falta de alimentos. Acha que me alimento mal e traz-me sempre um miminho. Só depois vem dar- me o beijo que tão bem me sabe. O outro, bem, o outro é um caso muito especial, não gasta as palavras mas o seu olhar e os seus gestos são tão afetuosos que dispensam palavras. Ela é diferente. Entra devagar e só depois de muito suavemente encostar a porta é que me chama: Paizinho, estás em casa? Que bem que me faz ouvir aquela voz de timbre igual ao da mãe!

Amam-me! Não duvido.

Mas, quererão eles saber o que penso e ouvir a minha opinião nos momentos de tomar decisões? Reconhecer-me-ão experiência e saber aproveitável? Duvido.

Dirão que os tempos são outros e os desafios diferentes.

Não sabem que o fazem, se soubessem não quereriam fazê-lo, mas tantas vezes me empurram para um estilo de vida que não é o meu e me retiram a capacidade de deliberação escolhendo por mim e para mim o que devo fazer, comer ou vestir!

Não tenho qualquer préstimo e não sou útil a ninguém. Esta consciência de mim, dói tanto como doeu, há uns meses, o olhar de comiseração que a mulher por quem me apaixonei me devolveu no momento em que lhe declarei o meu afeto.

Lembro-me da lentidão com que me habituei à sua presença quando, todas as tardes, por imposição dos meus filhos, ela aparecia para me tratar da casa. Lembro-me da forma gradual como a sua presença se foi convertendo em desejo. Declarei-me. Lembro-me do assombro e do silêncio insultuoso.

Velho tonto! A querer viver o que já não lhe é devido.

Comecei a desistir da vida. Estou à margem.

 

Cidália Carvalho

 

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1.7.15

TerrifiedMan-GeorgeHodan.jpg

 

Foto: Terrified Man - George Hodan

 

A “nau dos loucos” – (Narrenschiff) de que nos fala Michel Foucault é carregada de simbolismo. A água tem a função de levar para outro lado (o louco; o marginalizado), sendo também purificadora. O louco, ao mesmo tempo que é largado ao longo da margem do rio, sendo afastado do olhar dos outros que habitam as cidades, é purificado pela água. A nau aprisiona o louco, que “Fechado no navio, de onde não escapa, …é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos […]” (Foucault, 2004, p. 12).

A pessoa com doença mental foi, durante muito tempo, encarada como “não doente” e sujeita a tratamentos pouco dignos e violentos em locais pouco associados à saúde e à doença. A confirmar algumas destas afirmações, Antonin Artaud (Artaud, Van Gogh, Floreal, & Marx, 2010), que passa quase dez anos nos hospitais psiquiátricos, na sua Carta aos Diretores de Asilo de Loucos, refere-se aos “asilos” como “cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mão-de-obra gratuita e cómoda, e onde a brutalidade é norma […] O hospício de alienados sob o amparo da ciência e da justiça, é comparável aos quarteis, aos cárceres e às penitenciárias” (pp. 10-11) e adianta, ainda, “A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais” (p. 9). Nos seus escritos estão também expressas a exclusão e a condenação de que foi alvo e, em nome da individualidade, reclamou a liberdade, baseado na injustiça dos “asilos”. Van Gogh (Artaud et al., 2010) também nos ajuda a entender a realidade no século XIX quando, num internamento no manicómio, o designaram como homem indigno de viver em liberdade, referindo “E cá estou, há muitos dias, fechado e aferrolhado no manicómio, com guardas à vista, sem culpa provada, ou sequer provável” (p. 33). Da mesma forma, Sylvio Floreal, não deixou de escrever sobre a sua experiência e sobre a “loucura” e, num texto que intitula A visão do Inferno, ao referir-se ao hospício, diz que “Reinava a calma paradoxal, absurda, incompatível com aquele ambiente” (p. 59). Estes registos, ancorados em figuras das artes e literatura, são relatos na primeira pessoa que nos transportam para uma realidade que perturba, pela intensidade, simplicidade e nitidez da escrita, acompanhada, aqui e ali, de algumas imagens, também elas esclarecedoras da marginalização da pessoa com doença mental ao longo dos tempos. E hoje, ainda marginalizamos?

 

Ermelinda Macedo

 

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