Apressa o passo na calçada. Debaixo da chuva, molham-se as pedras e quem as calca. Rosto fechado de quem vai contra o mundo. Na paragem, Dona Alice espera impaciente o autocarro que já se prevê cheio, a arrebentar pelas costuras, num dia de greve. Mal o avista começa a ajeitar-se para não ficar à espera do próximo, que pode não chegar a vir. Devagar empurra quem ali já desesperava debaixo da chuvada.
O autocarro cumpre a missão de parar para deixar sair alguns, que se arrastam naquele emaranhado de gente. Vidros embaciados provam a lotação daquele espaço público. Os rostos enfadados de todos que, para além do dia-a-dia da lata de conserva que os recolhe, têm de levar com o ar respirado, os guarda-chuvas molhados, as rabugices que um dia chuvoso traz às almas das gentes.
Dona Alice esgueira-se por entre uma fila mal organizada que se precipita em direção à porta da frente, como se fosse o último dia das suas vidas. Encontrões, apertões, palavrões. Tudo vale na hora da partida. Mal o motorista abre as portas traseiras uns passageiros aventuram-se para não ficarem debaixo da chuva que teima em continuar. Dona Alice consegue entrar, deixando para trás algumas pessoas que respeitosamente cumpriam o seu lugar na fila. Ao invés, os passageiros da frente fincam pé junto à entrada, não avançando em direção às traseiras, suposto percurso natural. Impacientes, cá fora ouvem-se os gritos de alguns:
- Não há direito! Deixem entrar! Também queremos ir trabalhar!
Lá dentro alguns desviam o olhar, outros arqueiam as sobrancelhas. No seu lugar cativo, o motorista assiste à cena, calado. De repente, sabendo o tempo a dispensar em cada paragem para terminar o percurso no horário estipulado, ameaça fechar a porta. Lá fora o reboliço aumenta. Mais empurrões!
Dona Alice esmaga-se contra os passageiros da frente, a porta fecha-se atrás de si. À chuva ficam indignados aqueles a quem Dona Alice passou à frente. Entre dentes Dona Alice vai resmungando:
- Já não há respeito nenhum! Paga a gente o passe e ainda tem de aturar isto! E no final é só greves e gente mal-educada! Sinceramente, uma pessoa não merece isto!
E assim segue viagem o autocarro apinhado de cidadãos, em mais um dia de direitos, de cidadania ou a constante falta desta, por esta e outras andanças.
Cecília Pinto