7.12.12

 

Apressa o passo na calçada. Debaixo da chuva, molham-se as pedras e quem as calca. Rosto fechado de quem vai contra o mundo. Na paragem, Dona Alice espera impaciente o autocarro que já se prevê cheio, a arrebentar pelas costuras, num dia de greve. Mal o avista começa a ajeitar-se para não ficar à espera do próximo, que pode não chegar a vir. Devagar empurra quem ali já desesperava debaixo da chuvada.

O autocarro cumpre a missão de parar para deixar sair alguns, que se arrastam naquele emaranhado de gente. Vidros embaciados provam a lotação daquele espaço público. Os rostos enfadados de todos que, para além do dia-a-dia da lata de conserva que os recolhe, têm de levar com o ar respirado, os guarda-chuvas molhados, as rabugices que um dia chuvoso traz às almas das gentes.

Dona Alice esgueira-se por entre uma fila mal organizada que se precipita em direção à porta da frente, como se fosse o último dia das suas vidas. Encontrões, apertões, palavrões. Tudo vale na hora da partida. Mal o motorista abre as portas traseiras uns passageiros aventuram-se para não ficarem debaixo da chuva que teima em continuar. Dona Alice consegue entrar, deixando para trás algumas pessoas que respeitosamente cumpriam o seu lugar na fila. Ao invés, os passageiros da frente fincam pé junto à entrada, não avançando em direção às traseiras, suposto percurso natural. Impacientes, cá fora ouvem-se os gritos de alguns:

- Não há direito! Deixem entrar! Também queremos ir trabalhar!

Lá dentro alguns desviam o olhar, outros arqueiam as sobrancelhas. No seu lugar cativo, o motorista assiste à cena, calado. De repente, sabendo o tempo a dispensar em cada paragem para terminar o percurso no horário estipulado, ameaça fechar a porta. Lá fora o reboliço aumenta. Mais empurrões!

Dona Alice esmaga-se contra os passageiros da frente, a porta fecha-se atrás de si. À chuva ficam indignados aqueles a quem Dona Alice passou à frente. Entre dentes Dona Alice vai resmungando:

- Já não há respeito nenhum! Paga a gente o passe e ainda tem de aturar isto! E no final é só greves e gente mal-educada! Sinceramente, uma pessoa não merece isto!

E assim segue viagem o autocarro apinhado de cidadãos, em mais um dia de direitos, de cidadania ou a constante falta desta, por esta e outras andanças.

 

Cecília Pinto

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 21:00  Comentar

Pesquisar
 
Destaque

 

Porque às vezes é bom falar.

Equipa

> Alexandra Vaz

> Cidália Carvalho

> Ermelinda Macedo

> Fernando Couto

> Inês Ramos

> Jorge Saraiva

> José Azevedo

> Maria João Enes

> Marisa Fernandes

> Rui Duarte

> Sara Silva

> Sónia Abrantes

> Teresa Teixeira

Dezembro 2012
D
S
T
Q
Q
S
S

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
12
13
15

16
17
19
20
22

23
24
26
27
29

30
31


Arquivo
2019:

 J F M A M J J A S O N D


2018:

 J F M A M J J A S O N D


2017:

 J F M A M J J A S O N D


2016:

 J F M A M J J A S O N D


2015:

 J F M A M J J A S O N D


2014:

 J F M A M J J A S O N D


2013:

 J F M A M J J A S O N D


2012:

 J F M A M J J A S O N D


2011:

 J F M A M J J A S O N D


2010:

 J F M A M J J A S O N D


2009:

 J F M A M J J A S O N D


2008:

 J F M A M J J A S O N D


Comentários recentes
gostei muito do tema artigo inspirado com sabedori...
Não podia concordar mais. Muito grata pelo comentá...
Dinheiro compra uma cama, mas não o sono...Compra ...
Caro Eurico,O cenário descrito neste artigo enquad...
Grande artigo, que enquadra-se com a nossa realida...
Presenças
Ligações