O que é um vencedor, pergunto-me.
E a resposta chega célere ao meu cérebro, que é um bocado romântico: é alguém que não faz fretes, que só faz coisas de que gosta, que é feliz.
O problema é que o meu cérebro tem um grande antagonista dentro de mim: o coração, que é um chato dos diabos, embora lúcido e sábio, arranja sempre maneira de refutar o que o meu cérebro tem como certo.
Ora bem, o meu coração diz-me que não é bem assim.
Podemos fazer fretes e, ao mesmo tempo, ser felizes – diz ele. – O que é gastar uma tarde de sol fechado em casa para ajudar o filho a fazer um trabalho? E passar horas numa sala de espera de hospital, com o pai?
Podia enumerar mais uma série de fretes que, por amor, muitos fazemos na vida, mas não é necessário... Porque aquilo que o meu coração quer dizer, está dito: sem amor, a felicidade humana não é possível; e é justamente por amor que se fazem as coisas mais chatas... abdicando de outras, mais agradáveis.
Além disso, fazermos aquilo de que gostamos, por exemplo a nível laboral, nem sempre depende só de nós.
Quantos querem passar os dias a escrever e não encontram editora que os publique nem leitores interessados? Quantos fazem teatro e dança, mas também têm de dar aulas ou varrer ruas para comprar o que comem? Quantos pintam, esculpem, desenham, fotografam ou realizam vídeos que largam a um canto porque não têm onde expor o seu trabalho? Quantos fazem cursos de línguas, antropologia, sociologia, psicologia, matemática, e acabam a arrumar produtos nas prateleiras dos supermercados? Quantos sonham com cantigas, com experiências científicas ou corridas de automóveis e ganham a vida atrás de balcões e a servir às mesas? Serão todos estes que nomeei, e outros exemplos inesgotáveis pelo mundo, uns falhados?
O meu cérebro, sempre precipitado, diz:
Se conseguirem ser felizes, acordar todos os dias com um sorriso e fizerem outras pessoas, ao seu redor, também felizes, são vencedores! Mesmo que tenham falhado noutro campo...
A vida não é assim tão simples! – interrompe logo o coração, a armar-se em letrado só porque leu uns poemas e uns romances. – Já o Eça de Queiroz era da geração dos “vencidos da vida”, aqueles que renunciaram aos ideais da juventude para se renderem aos confortos burgueses, não é verdade? Às urtigas com os sonhos de justiça, esperança, liberdade, felicidade! Tudo conceitos vãos e ocos: do que as pessoas precisam mesmo é de dinheirinho para comprar comida e trapos novos, e quanto mais melhor!
E assim lá deita o coração por terra toda a linda teoria cerebral da felicidade, inspirada no budismo, a única religião que promete a felicidade em vida, ao contrário de todas as outras, das judaico-cristãs ao islamismo, segundo as quais é preciso morrer-se para merecer a recompensa da felicidade eterna – e só em caso de boa conduta, sendo a definição de boa conduta tão discutível como as próprias religiões.
O tema é inesgotável, complexo, problemático. E não tenho solução para ele, nem da parte do cérebro, nem do coração. Tenho para mim que o mais acertado é mesmo, como dizia o Nobel que recusou o Nobel, Beckett, “falhar melhor”.
E o que quer isto dizer? Que o importante é não desistir: já se sabe que, por mais realistas que sejam os nossos objetivos, e alcançáveis os nossos sonhos, não nos escapamos de falhar muitas vezes, até conseguirmos o que desejamos. E pode até acontecer nunca conseguirmos.
Mas isso não faz de nós falhados. Ao contrário: de cada vez que nos reerguemos e seguimos em frente, preparados para falhar de novo, somos vencedores. E ainda por cima levamos um pouco mais de experiência às costas, portanto falharemos melhor.
E falharemos melhor muitas e muitas vezes, até morrermos. Seja no amor, na cozinha, no emprego, na ginástica, na arte... À vossa escolha.
Uma nota afinal, apenas, para a arte. Na sua prosa, Fernando Pessoa disse que ela era “essencialmente erro”. E acho que podemos dar-lhe crédito, pois ele, que era outro vencido da vida, empregado de escritório alcoólico e sem amor certo, que morreu antes de publicar 90 por cento da sua obra, percebia bastante do assunto – hoje, ninguém se atreveria a questionar o seu estatuto de artista, não é? Pois: é preciso falhar para vencer, pois somos vitoriosos simplesmente por tentarmos... ser felizes, bem sucedidos, ricos, musculados, criativos, melhores. À vossa escolha.
Berta Cem Mil (articulista convidada)