O dia amanhece na mesma tristeza das últimas semanas: cinzento, pesado, chuvoso. Dá vontade de cortar os pulsos ainda antes do pequeno-almoço, todas as santas manhãs. Como de costume, levanto-me num pranto masoquista que me empurra para fora do edredão e me lembra que tenho de ir trabalhar. Não tenho nada que me sirva, estou uma baleia em expansão. Começo o dia com a minha torrada em pão serrano, uma meia-de-leite em si bemol e passa-me logo a tristeza. Chego a questionar as propriedades terapêuticas daquela torrada, trazidas pelo Sr. Antero, esse sim, cada vez mais magro, o sortudo. Gosto de ver as mesmas caras todos os dias, de entrar na leitaria e saber quem encontro. Não gosto de surpresas, de mudanças ou de meias-de-leite que sabem a coisa triste. No entanto, hoje reparo que o tipo que se senta sempre ali, na mesa do canto, com os olhos perdidos no vazio, está diferente. Em seis meses, há qualquer coisa nele que finalmente irradia. Oh caramba, acho que me apanhou a olhar para ele. “Senhor Antero, traga-me a conta por favor. Estou com um bocadinho de pressa.” Este senhor Antero… O homem está mesmo magro. Nem deve fazer ideia da sorte que tem. É muito boa pessoa mas não merece mais do que eu, essa é que é essa. Uns com tanto e outros com tão pouco, sinceramente….
Mas o que quer aquela maluca? Não para de olhar para mim desde que aqui entrei hoje. Um tipo já não pode tomar o pequeno-almoço descansado, querem ver? Estou com as tipas pelos cabelos. Farto, cansado, irritado. São todas iguais. A mim, não me apanham mais. E a maluca que se recusa a sair lá de casa? Ainda me fez ficar com cara de parvo este tempo todo, a achar que devia ser por amor que ela não se ia embora. É preciso ser mesmo estúpido! Mas o camelo já se cansou e a menina vai ver com quantos paus se fazem canoas. Vou esperar, pacientemente, que o gajo volte a lá entrar hoje. E vou adornar-lhes a testa com um belo tiro certeiro. A cada um. Agora, desfruto do meu pequeno-almoço antes da liberdade que mereço. Pode ser que um dia ostente a cara do Sr. Antero; teve uma vidinha santa a avaliar pelas sonoras gargalhadas que dá, mesmo nos dias em que chove torrencialmente. Pois, não há de rir com vontade, a criatura, com tristes como eu a encherem-lhe os bolsos ano após ano. Ah, Sr. Antero, como invejo a sua sorte…
Como é, Isilda, vamos casar? Há seis meses que aqui nos sentamos, depois de promessas trocadas ao jantar que te fazem discursar melhor que o Obama. Ao cair da noite, queres tudo, fazes-me prometer tudo, chego a desejar tudo; de manhã, entras na leitaria, e as tuas vontades diluem-se no açúcar que adicionas ao café. Palavra de honra que não te entendo. Que me interessa a mim que, à luz do dia, te entristeça o que vês à tua volta? A rapariga elegante que mastiga o pão serrano como se de um cachalote se tratasse, vazia de amor e de uma faísca que seja. O tipo que vive na bolha, mecânico no gesto e no olhar, e que hoje parece ter tido a noite da sua vida. Deve ter arranjado uma amante. Sim, já vi isso tudo… mas que me interessa a mim, Isilda, que as pessoas tenham desistido de viver enquanto ainda respiram? O que pretendes? Fazer-nos chegar a isso também? É isso que queres? Queres o marasmo que nos induz a uma vitória que não existe? Queres vencer, nem sabes bem o quê mas, nessa tua luta, Isilda, afastas-me de ti. E eu, só quero vencer contigo. Ao teu lado, dentro de ti, com a tua mão na minha. Vencer, assim. Tu queres ter, eu quero ser. Dizes que sentes a tristeza dos outros e que isso te impede de seres feliz. São teus os sentimentos dos outros? E os teus, são de quem? E se eu quiser muito cruzar a meta da felicidade contigo? Dás-me a mão e corres comigo? Corres, Isilda?
“Sr. Antero, a torrada em pão serrano. Sr. Antero, a meia de leite está demasiado quente. Sr. Antero, sei que tem muita gente à espera mas tenho um pouco de pressa…”. Quarenta e dois anos a ouvir o meu nome usado até à exaustão. Décadas de vidas, que me foram deixadas nos pires e nos guardanapos de pano, que servi com dedicação. Não escolheria outra vida. Esta leitaria continuará na família na próxima geração, faz-me tão feliz sabê-lo. Em poucos meses, deixarei de cá estar. Este cancro não me deixa prorrogar o prazo. Não o questiono mais, mas às vezes apetecia-me dá-lo, por breves instantes, a estas almas que por aqui passam, ano após ano, com aquele ar de quem tem sempre que se queixar da vida. A rapariga bonita que não vive bem na sua pele e que se isola do mundo. Se soubesse como me delicio a vê-la saborear a bela torrada quando já não consigo mastigar coisa nenhuma… O rapaz que usa - o que desconfio ser - uma aliança de “viúvo de mulher viva”, mas que nunca trouxe mais que a sua sombra em cada manhã. Como gostaria de lhe dizer que o azedume arruína de dentro para fora e que só o amor permite vencê-lo. Ao casal que vive na montanha-russa de emoções, a que não sabe dar nome nem corpo, dizer-lhes que a felicidade está ali, ao virar da esquina, se nos permitirmos dobrá-la, sem olhar para trás. A toda a gente que aqui entra e não tem qualquer noção da sua finitude, falar-lhes da brisa suave e matreira que muda as páginas do livro da existência e que só sentimos quando batemos na contracapa. Com força e sem tempo. O meu tempo escoa-se na última página da minha história. Feitas as contas, sinto-me um vencedor por toda a vida que me foi dada a viver. Até ao último fôlego, deixarei essa magia no pão serrano que me acalenta as memórias, nos sorrisos que dão cor à vida, na gargalhada que cura a dor. E a vida, que não cessará pela minha finitude, jamais será a mesma depois da minha passagem por ela: ficará mais rica, mais plena. Vencedora.
Alexandra Vaz