7.3.09


 


Naquela tarde, depois de mais um dia de trabalho, subo a rua em direcção ao autocarro que há-de levar-me a casa. É tarde. Está muito movimento e a minha preocupação é andar depressa para não atrasar o jantar. Cruzo-me com as pessoas sem reparar nelas. Não teria chamado a minha atenção se não fosse a sua figura frágil e o seu andar cambaleante; alguma coisa estava errada com aquele homem que há muito passou pela juventude. Olho para trás na tentativa de perceber. Lá estava ele, agora sentado no degrau de um edifício.

Não sem algum desagrado pelo contratempo, mas a sentir que deveria fazer alguma coisa, volto para trás e dirijo-me a ele perguntando se se sentia bem.

Não, não sentia.

Tinha saído de casa pela manhã e a pé, tinha ido até ao Instituto de Oncologia fazer o tratamento. Agora estava de regresso a casa, novamente a pé. Como não tinha comido estava muito fraco. Quis dar-lhe algum dinheiro e uma senha para ir de autocarro.

Não aceitou. Teria muita vergonha se aceitasse.

Desde que a mulher morreu que vive sozinho, esconde as dificuldades dos vizinhos, porque, segundo ele, tem muita dignidade. Reparo que, apesar de cansado e frágil, tem ar muito asseado.

Insisto para que aceite a senha de autocarro. Perante a recusa despeço-me e retomo o meu caminho. Pareceu-me que tentei fazer o que podia. Não entendia pois aquele mal-estar que me intranquilizava.

Nos dias seguintes pensei muito naquele homem. Disse a mim mesma que se nos voltássemos a cruzar, iria conseguir que ele aceitasse a minha ajuda.

Passaram uns meses. Uma tarde, com uma terrível dor de cabeça, saio mais cedo do emprego para ir descansar. A enxaqueca estava a consumir-me e só pensava em chegar a casa para me deitar.

Eis que de novo e no mesmo sítio me cruzo com ele. Estava mais frágil e ainda mais cansado. Tão cansado que não se fez rogado e aceitou a ajuda monetária, desta vez para ir de táxi porque o seu estado, já no limite das forças, não lhe permitia ir até ao autocarro. Agarrou-me as mãos e beijou-as. A situação era-me desconfortável e afastei-as devagarinho. Voltou a abordar a perda da mulher e o facto de morar sozinho. Interrompi-o dizendo que já me tinha falado disso. A minha cabeça continuava a doer e parecia rebentar a qualquer momento.

O homem, sentado no degrau, tentava levantar-se sem qualquer êxito. Do nariz, um leve fio de sangue denunciava mais um tratamento em Oncologia. Uma vendedeira de rua que entretanto se aproximou, ofereceu-se para o levar a casa. Tanto melhor, poderia comer uma boa refeição com o dinheiro que lhe dei para o táxi.

Ainda olho para trás a tempo de vê-la a ajudá-lo a entrar para o seu furgão. Experimentei uma sensação de alívio. Resolvi um problema àquele homem. Pontual, mas resolvi. Esta sensação foi muito curta porque aquela pessoa não me saía do pensamento. Novamente aquele mal-estar. Aquela mesma intranquilidade.

Hoje, e porque não há duas sem três, espero ter a sorte de me cruzar novamente com ele. Desta vez sei o que tenho a fazer.

Querido amigo, vou dar-lhe tempo. Vou deixar o jantar para mais tarde, aguentar qualquer dor de cabeça, sentar-me consigo no degrau do edifício, dar-lhe as mãos e vai poder falar-me de como é viver sem a sua companheira de tantos anos, de como é difícil enfrentar uma doença e os tratamentos violentos a que é submetido. Vai poder falar-me da sua solidão, dos seus medos… Vai poder falar-me do que entender…

Eu vou escutá-lo!

 

Cidália Carvalho

(Imagem: Cabeça de Velho, de Candido Portinari)

 
Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 02:31  Comentar

De Ana Lua a 9 de Março de 2009 às 18:00
Sabes... quantas vezes a vida nos coloca situações no nosso caminho para que sejamos instrumento na partilha e demonstrações de que o AMOR ainda existe no Ser Humano.
Mas o corre corre da falta de tempo e foco no que temos a fazer no imediato nos impossibilita de por vezes, através de simples gestos, fazermos/sermos a felicidade de alguém...
Sim a solidão de alguém doente é duplamente dolorosa... porque é solidão e porque é doença...
Com carinho.

De Susana Cabral a 7 de Março de 2009 às 23:34
Seja qual for a intenção da autora ou a forma como descreve uma situação e o que poderá ou não dar a entender, deveremos nos lembrar que a solidão de quem esta doente é paralisante e angustiante.
Estar doente por si só é algo que nos priva do que mais necessitamos para viver a saúde. Passar por uma doença, seja ela qual for, sozinho e sem apoio com certeza que dificulta o efeito terapêutico de qualquer medicamento.


De Anónimo a 7 de Março de 2009 às 20:28
Estar a falar dos sentimentos, da desatenção e do egoísmo da autora não são relevantes. Foi isso que quis dizer.

De Cidália Carvalho a 7 de Março de 2009 às 17:43
Olá Maria M,

Obrigada pela seu comentário.

A ideia do texto é, efectivamente, focarmos a nossa atenção no(s) problema(s) do Senhor idoso e doente, de resto, como bem entendeu e referiu.

Já não me parece tão correcta a visão de que foi intenção da autora chamar a atenção sobre si mesma. Repare que foi necessário um segundo encontro e, repetir o erro para perceber a verdadeira problemática e necessidades do Senhor. O texto assume essa desatenção e egoismo da autora, mais preocupada com os horários e dores de cabeça........

De Maria M a 7 de Março de 2009 às 16:21
Quer me parecer que a atenção neste texto está focada apenas e só para a autora do mesmo. De sublinhar a frase: "Agarrou-me as mãos e beijou-as". Penso eu que a intenção seria chamar a atenção para o problema do "doente" e não para a suposta "bondade" da autora.

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