31.3.09


 


Era mais um entardecer soalheiro que aquecia os rostos ausentes no banco do jardim naquela praça. As conversas banais para quebrar o silêncio incómodo, acompanhavam o chilrear dos pássaros. Celestino, com o olhar preso no horizonte e os pensamentos ancorados no passado, deixou-se despertar pela inquietude contagiante das crianças que fugiam, como se não houvesse amanhã, da campainha que ecoava da escola. Celestino pensava amiúde - “E se não houvesse amanhã, para mim?” Ao ver as crianças de sorrisos abertos, deixou-se mergulhar nas memórias… voltou a ser o pai forte e sorridente que abraçava e levantava os seus dois filhotes com a leveza que só o amor permite, voltou a sentir-se invadido pelo aconchego dos gestos ternurentos que só um filho sabe dar, voltou… ao presente, e resignadamente sorriu… estava na hora. Lutando contra a força da gravidade cada vez mais decidida, levantou-se num esforço longo e demorado, com o peso que só a certeza do abandono encerra. Faltavam-lhe braços em seu redor que o ajudassem a abandonar o banco frio. Desaparecera o calor dos afectos, o tempo de partilha de histórias e tontices. Desaparecera o amor, ou pelo menos as pessoas para que o ajudassem a recordar o que era o amor. Tanta coisa que desaparecera, menos uma: sobrava-lhe tempo, muito tempo. Porque o tempo parece petrificar-se na amargura de quem passa por ele só, completamente só…

 

Era tempo de ir para casa. A sua “casa”, que não era mais do que um roteiro penoso de memórias cravadas em cada mesa cambaleante, em cada tábua do soalho que range ao ritmo dos passos lentos, em cada espelho que reflecte para si a imagem serena do seu amor, da sua vida, do amor da sua vida. Era tempo de ir para “casa”. Outrora o seu refúgio e o seu lar, a casa do presente não era mais do que um rigoroso relógio suíço que assinalava com precisão as épocas festivas (pelo menos para alguns) do ano. O silêncio pesado quebrava-se com o toque do telefone que conduzia até si as palavras doces dos netos e as sempre, sempre apressadas vozes dos filhos, dos seus dois filhotes. Na verdade, essa era a única forma de Celestino se lembrar que o Natal continuava a existir, porque a sua família, pouco a pouco, foi deixando de lhe aquecer a alma, foi deixando de estar bem juntinho ao seu coração, foi deixando de o ser, família. Celestino não se sentia a família de ninguém. Era também a única forma de se recordar que mais um ano tinha passado sobre o seu nascimento, quando, na realidade, aquilo que, com vergonha mais desejava, era terminar com o sofrimento de sobreviver mais um dia à companhia tristemente inabalável da solidão.

 

Enquanto caminhava com os olhos vazios perdidos na calçada, Celestino interrogava-se “E se não houvesse amanhã, para mim, terias saudades minhas, solidão?”…

 

Liliana Jesus

 
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29.3.09


 


As grandes concentrações urbanas, cada vez mais, criam sem-abrigo, pessoas sem tecto, sem família, sem amigos, sem afectos, enfim sós... numa praça, num banco de jardim, na entrada de prédios e lojas, em contentores de lixo, ou simplesmente na rua, já nos fomos habituando a estes elementos paisagísticos... Ainda que à primeira vista pareça escandalosa esta afirmação, a verdade é que os transeuntes passam, olham, por vezes reparam e sentem desconforto, mas na maior parte das vezes são indiferentes...

Pessoas marcadas por rupturas familiares e relacionais, por doenças graves, por comportamentos aditivos, por ausência de uma casa para viverem, pela falta de emprego, moram na rua... rodeados de centenas de outras pessoas, de sons, de movimento e ao mesmo tempo tão sós... as relações afectivas significativas são muitas vezes inexistentes. O conforto, o calor humano de um abraço, o sorriso sincero de um amigo, de um familiar, o aconchego de um sofá, um programa de televisão, uma refeição quente... não existem... como se sentirão estas pessoas? Miseráveis, digo eu...

Gente rica de experiências anteriores, de histórias da família, dos amigos, do emprego... e agora? Restam-lhe memórias... que não se partilham... apenas restam lembranças...

Naturalmente estas pessoas andam a passos largos por caminhos de tristeza, sombra, e solidão. Bateram no fundo de todo e qualquer processo de exclusão.

 

Há alguns anos atrás, numa praça da cidade do Porto, conheci um senhor que costumava permanecer por ali... parecia ter meia idade. Era alto, de aspecto grotesco. Tinha barba e cabelo compridos. Costumava falar com ele próprio e por vezes em alta voz... os transeuntes reparariam nele por estas razões. Foi também isso que me chamou a atenção. Um certo dia vim a conhecer a sua História da Vida e tive oportunidade de ter conversas muito interessantes e despertadoras da consciência. Afinal ele tinha uma voz doce, meiga, apesar de carregada de tristeza, um discurso eloquente, uma consciência e uma lucidez incríveis, contrariando as primeiras impressões.

Foi uma pessoa que passou parte da vida a formar-se, a criar uma família, mulher, filhos, amigos, a construir uma carreira, enfim aquilo que a maioria de nós tenta fazer e faz de alguma forma. No entanto, a dependência alcoólica e do jogo, começaram por corroer, destruir aquele lugar... Após várias tentativas de tratamento, sem sucesso, a família desistiu, afastou-se, abandonou-o... No emprego, foi despedido... Sem rendimentos, deixou de pagar a casa... foi despejado... passou a morar na rua… só. Desde aí tem andado de cidade em cidade, de praça em praça, de rua em rua... nunca mais falou com a mulher e os filhos... Pensa todos os dias neles... tem saudades, muitas. Sente vergonha e frustração. Para não voltar a desiludir nem defraudar aqueles que tanto ama, mantém-se na rua, com ele só.

Os comportamentos relacionados com a dependência alcoólica agravaram-se e outros problemas de saúde associados vão aparecendo, físicos e mentais. Até quando durará a lucidez e a consciência que tanto me surpreenderam? E as memórias, até quando ficam? Sim, porque o resto já se extinguiu há muito...

As condições adversas a que progressivamente foi sendo sujeito e que culminam numa ruptura total com todos os sistemas de pertença, formais ou informais, tornam-no num excluído, no sentido mais grave que a expressão possa ter.

 

Será que cada um de nós alguma vez pensa que estas pessoas deixam atrás de si Histórias, experiências e vivências tão idênticas às nossas? Será que achamos que nasceram no abismo em que as vemos e que sempre foi assim, para eles? E que nós estamos muito longe de chegar àquela condição? Não criemos ilusões... 

 

JM

 
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25.3.09

 


 


- Vou telefonar para lhe contar que…

Parou repentinamente, ficou suspenso como se fosse um títere subitamente abandonado. Depois desceu, lentamente, e ficou sentado na cadeira.

 

Como era possível? Onze meses depois e o seu cérebro, por vezes, persistia, insistia em ignorar a realidade, teimava em não aceitar o que tinha acontecido, o que tinha mudado irreversivelmente.

Porquê? Toda a informação estava lá, tão exacta, clara, brutal e límpida como quando foi guardada: aquele telefonema às oito da manhã, profissional e contido, quase telegráfico, a informar que ela tinha morrido havia meia hora; a primeira vez que os seus olhos perceberam, através de uma porta entreaberta, o seu corpo já sem conteúdo, sem alma, sem calor; o último instante, no cemitério, no qual tomou consciência de que os seus olhos jamais voltariam a recolher, a actualizar aquela imagem.

Ficariam apenas as memórias. Até onde será possível manter as memórias? Como será que o tempo as altera, as desgasta, as corrompe, as corrói?

 

Sabia que aquele lugar ficaria ali, dentro de si, durante toda a vida que lhe sobejava. Pressentia que aquele vazio, aquela solidão que se instalou, estavam para ficar; quanto tempo ficariam? Provavelmente para sempre, até que fosse possível um novo abraço, até ser possível dizer tudo o que ficou por dizer.

 

FCC

 

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21.3.09


 


Acordo de manhã. Mais um dia. Mais um dia que tenho que sair da cama e só me apetece ficar enterrada nos lençóis. Olho para a roupa que tenho em cima da cadeira. Não há nada que me apeteça vestir. Qualquer roupa que use nunca vai ser suficiente boa para pertencer ao grupo. Elas riem-se de mim, apontam o dedo.

Até a Carolina já não fala comigo. Agora são todas amigas. Que elas se riam, eu não quero saber. Agora ela? Eu nunca esperei… com quem converso agora? Quem me apoia quando as lágrimas estiverem a saltar dos meus olhos? A quem ligo quando em casa tudo desaba? A quem posso contar as dores que me vão no coração?

Em casa a Mãe diz que se elas me tratam assim é porque não merecem a minha amizade. Mas só eu sei o quanto gostava de fazer parte do grupo.

Só quero fugir daqui, e nunca mais aparecer. Será que se eu desaparecer elas vão sentir culpa? Quem sabe a minha falta?

A quem tento eu enganar? Eu sei que não… iam chamar-me fraca. Mas eu não sou fraca. Sinto-me sozinha, é só isso. Porque é que ninguém entende?

Dói-me o peito, sinto cá dentro uma mão que me aperta o coração. Tristeza, disse a psicóloga da escola. Sofro de tristeza.

Mas eu não sinto isso… não é tristeza. É solidão. Já ninguém se senta ao meu lado na sala. Já ninguém me acompanha nos intervalos, já ninguém faz o caminho de casa comigo.

Queria fechar os olhos e que tudo isto desaparecesse, que todas as dores acabassem. Queria voltar a rir, a gostar das pessoas, a ter amigos.

Continuo deitada na cama. Lá fora chove. É o céu a chorar comigo.

 

Filipa

 
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19.3.09


 


Concentro-me no fio que vejo à minha frente. Olho somente para os 20 cm que me separam do passo seguinte. Posso parar, olhar para a frente, para traz, para cima, para baixo ou concentrar-me somente nos 20 cm à minha frente, talvez só 15, ou até 10.

 

Se espreitar para baixo, posso ver o abismo e lembrar-me que ainda não me desequilibrei.

 

Se olhar para cima, posso ver uma chuva de incertezas que me pode molhar mas adivinho a força que me pode guiar.

 

Se olhar em frente, posso ver terra firme ao longe que o meu fio chega a alcançar e percorrer. Mas sei que até lá tenho de me concentrar em cada passo, um de cada vez, tenho de olhar para os 20 cm à minha frente, talvez só 15, ou até 10.

 

Não olho para traz, não preciso. Tudo vem comigo. As gargalhadas e os choros, as tristezas e as alegrias que vivi, que senti, que partilhei, que recebi, que tanto recebi. Trago comigo todos aqueles cujo fio se cruzou com o meu, tecendo uma teia de amizade. Todos esses a quem eu desejo que sejam tão felizes. Trago-os em cada um dos meus passos, nos próximos 10 ou 15 cm à minha frente, quem sabe, até 20.

 

Estefânia Sousa

 

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18.3.09


 


Sinto a minha vida a passar como um filme onde eu adormeci…

O que eu faço neste mundo?

 

Desde a minha adolescência que sinto sempre ser menos do que deveria! Meus pais gostam mais da minha irmã e ela é que é perfeita! Não consigo fugir às comparações diárias… até na escola todos viravam à sua passagem… e eu: invisível… conhecida apenas como a irmã mais nova dela. E esse sentimento persegue-me… ainda me sinto minúscula, sozinha, completamente perdida neste mundo onde eu não tenho lugar… Como eu me sinto a mais infeliz dos mortais!

 

Não consigo fazer o meu marido feliz e nem sei porque é que ele casou comigo! Talvez por pena? Quanto mais ele tenta chegar a mim, mais culpa sinto por não o merecer! Não gosto de mim… porque é que alguém gostará?

 

E ultimamente… custa-me até dizer isto… mas tenho pensado tanto que seria tão mais fácil desaparecer… Não tenho sentido vontade de fazer nada, tudo me custa… levantar-me da cama é extremamente doloroso… ver-me ao espelho ainda mais… fujo dos outros, fujo da vida como de mim mesma… sinto uma angústia… e vejo os outros a falarem comigo mas não os consigo ouvir… e ninguém consegue compreender-me… falamos línguas diferentes? Bem, eu própria não consigo falar comigo, não tenho linguagem nem vida! É por isso que mesmo no meio de uma multidão, eu sentir-me-ia sozinha…

Não sinto alegria em mim, não sinto alegria nos outros e nem sinto alegria no mundo… acho que morri e ainda não me enterraram…

 

Ana Lua

 

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15.3.09


 


Bastou-me sentir o olhar dele, quando abri a porta do gabinete, para perceber logo que não tinha a mínima hipótese, como já era de esperar. Para dizer a verdade, nem sabia como tinha chegado tão longe… será que não se tinham apercebido de que não indicara a data de nascimento, ou que dificilmente uma menina de vinte e cinco anos teria aquela experiência profissional, ou terão gostado assim tanto da minha carta de apresentação?

Tinha-me convencido a mim própria a não desistir, apesar de todas as candidaturas sem resposta e das esperas por conversas infrutíferas com conhecidos mais bem posicionados. Afinal, são quarenta e sete anos e não setenta e quatro, a minha cabeça não só funciona perfeitamente bem como já não se atrapalha com poeiras, e toda eu encaixo no tal perfil pretendido, à excepção da idade, claro, factor que, cada vez mo deixam mais claro, tem mesmo o incompreensível condão de anular todos os outros.

Haverá alguma justiça nisto tudo? Por mais que tenha feito e trabalhado, o meu BI agora dita que já não pertenço ao grupo dos produtivos, que não sirvo para trabalho nenhum, que tenho de me resignar a não ser ninguém? Esta não é a minha história - como é que vim aqui parar? E ainda há o dinheiro. A família aguenta-se, mas eu agora vou depender do marido ou do dinheiro das heranças?

Os velhos a sério, esses sim devem sofrer. Abandonados em algum lar ou na rua, até, a esses foi-lhes deixado bem claro que já não fazem parte do mundo de todos, que não têm nada que esperar coisa alguma da vida, a não ser libertar espaço brevemente.

 

Mas eu estou apenas farta. Farta de estar em casa sozinha e de ter de esticar as lides que antes me demoravam uma manhã pelos cinco dias da semana útil. Adoro o meu marido, adoro os meus filhos e adorava a minha casa. Mas agora, como toda a gente ou trabalha ou estuda, não tenho ninguém com quem estar durante o dia, e quando eles chegam ainda me sinto mais como se estivesse a cometer um pecado qualquer. Às vezes saio doidinha com um saco das compras que há-de ir e voltar vazio só para ver pessoas. É melhor assim do que estar com conhecidos, que olham para mim ou com indiferença ou com pena, como se tivesse uma deficiência qualquer, lembrando-me, de uma forma ou da outra, de que não faço parte do mundo em que eles seguramente vivem.

Se ao menos eu não acreditasse que isso é verdade.

 

Ana A

 
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10.3.09

 


 


O início de mais um dia leva-o, inevitavelmente, ao ritual diário. Olha-se ao espelho e verifica o seu aspecto, o seu fato cinzento impecavelmente bem passado, a camisa engomada e uma gravata da moda.

O único senão naquele quadro tão bem produzido era as suas olheiras; mesmo com camadas de creme para as disfarçar, eram perceptíveis. A desculpa da farra da noite anterior teria de pegar mais uma vez.

 

O dia decorria com alguma normalidade e antes que os primeiros sinais de ressaca se manifestassem, levou-o a mais um gesto rotineiro e vital, procurar no bolso aquele saquinho que continha a “alavanca” que o empurrava para a vida e o fazia sentir capaz de tudo.

Não o encontrou no local habitual; com a pressa deve tê-lo colocado num outro bolso… Nada… Como os seus movimentos começavam a deixar transparecer o seu nervosismo e a sua ansiedade, um colega que o observava perguntou: “- Está tudo bem?”

Como poderia estar tudo bem? Como? Começava a precisar urgentemente da sua dose, as mãos começavam a tremer, o pânico estava a dar-lhe vontade de vomitar. Tinha dentro de alguns minutos uma reunião com o seu Director e já não conseguia pensar em mais nada, precisava apenas daquele líquido “milagroso” a misturar-se com o seu sangue e fazê-lo sentir-se vivo outra vez.

 

Começou a ver a sala andar à roda e inevitavelmente um “piloto automático” assumiu o controlo das suas acções.

Sem pensar em mais nada saiu disparado em direcção a sua casa; lá com certeza iria encontrar o que tanto precisava para conseguir acalmar e sossegar a “histeria” que sentia interiormente.

Entrou em casa e procurou no seu secreto esconderijo o saquinho que continha o seu “melhor amigo”. Vasculhou tudo, remexeu em tudo, mais do que uma vez e nada.

Sentia a cabeça a rebentar, os pulmões a asfixiarem e o coração batia de tal forma que parecia que iria explodir. Estava já sem capacidade para raciocinar, tinha as suas forças todas canalizadas num único sentido, onde, para onde e de que maneira iria conseguir a dose de heroína que tanto necessitava para voltar ao “normal”?

Sem hesitar dirigiu-se àquele local onde, é sabido por todos, se encontra com facilidade qualquer espécie de estupefaciente. Num rápido trocar de mãos teve finalmente em seu poder o seu “precioso paraíso”.

 

No primeiro local que lhe pareceu minimamente resguardado, preparou a substância que dentro de segundos e após ter perfurado uma veia, injectou no seu corpo. E esperou que o efeito se apoderasse dele e o trouxesse “de volta”.

Quando finalmente ficou no controlo da situação viu que, mesmo ao seu lado, estava um rapaz, talvez da sua idade, com um aspecto imundo e subnutrido, ainda com a seringa espetada no braço.

Aquele rapaz com quem partilhou o passeio e por quem, no primeiro momento, sentiu algum desdém, era um espelho de si próprio.

O que os separava era apenas a distância de umas roupas lavadas e um aspecto cuidado, porque ambos partilhavam um olhar raiado, uma vida condicionada e dependente e uma solidão desoladora, ainda mais perigosa que os efeitos da droga.

 

Susana Cabral

 

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7.3.09


 


Naquela tarde, depois de mais um dia de trabalho, subo a rua em direcção ao autocarro que há-de levar-me a casa. É tarde. Está muito movimento e a minha preocupação é andar depressa para não atrasar o jantar. Cruzo-me com as pessoas sem reparar nelas. Não teria chamado a minha atenção se não fosse a sua figura frágil e o seu andar cambaleante; alguma coisa estava errada com aquele homem que há muito passou pela juventude. Olho para trás na tentativa de perceber. Lá estava ele, agora sentado no degrau de um edifício.

Não sem algum desagrado pelo contratempo, mas a sentir que deveria fazer alguma coisa, volto para trás e dirijo-me a ele perguntando se se sentia bem.

Não, não sentia.

Tinha saído de casa pela manhã e a pé, tinha ido até ao Instituto de Oncologia fazer o tratamento. Agora estava de regresso a casa, novamente a pé. Como não tinha comido estava muito fraco. Quis dar-lhe algum dinheiro e uma senha para ir de autocarro.

Não aceitou. Teria muita vergonha se aceitasse.

Desde que a mulher morreu que vive sozinho, esconde as dificuldades dos vizinhos, porque, segundo ele, tem muita dignidade. Reparo que, apesar de cansado e frágil, tem ar muito asseado.

Insisto para que aceite a senha de autocarro. Perante a recusa despeço-me e retomo o meu caminho. Pareceu-me que tentei fazer o que podia. Não entendia pois aquele mal-estar que me intranquilizava.

Nos dias seguintes pensei muito naquele homem. Disse a mim mesma que se nos voltássemos a cruzar, iria conseguir que ele aceitasse a minha ajuda.

Passaram uns meses. Uma tarde, com uma terrível dor de cabeça, saio mais cedo do emprego para ir descansar. A enxaqueca estava a consumir-me e só pensava em chegar a casa para me deitar.

Eis que de novo e no mesmo sítio me cruzo com ele. Estava mais frágil e ainda mais cansado. Tão cansado que não se fez rogado e aceitou a ajuda monetária, desta vez para ir de táxi porque o seu estado, já no limite das forças, não lhe permitia ir até ao autocarro. Agarrou-me as mãos e beijou-as. A situação era-me desconfortável e afastei-as devagarinho. Voltou a abordar a perda da mulher e o facto de morar sozinho. Interrompi-o dizendo que já me tinha falado disso. A minha cabeça continuava a doer e parecia rebentar a qualquer momento.

O homem, sentado no degrau, tentava levantar-se sem qualquer êxito. Do nariz, um leve fio de sangue denunciava mais um tratamento em Oncologia. Uma vendedeira de rua que entretanto se aproximou, ofereceu-se para o levar a casa. Tanto melhor, poderia comer uma boa refeição com o dinheiro que lhe dei para o táxi.

Ainda olho para trás a tempo de vê-la a ajudá-lo a entrar para o seu furgão. Experimentei uma sensação de alívio. Resolvi um problema àquele homem. Pontual, mas resolvi. Esta sensação foi muito curta porque aquela pessoa não me saía do pensamento. Novamente aquele mal-estar. Aquela mesma intranquilidade.

Hoje, e porque não há duas sem três, espero ter a sorte de me cruzar novamente com ele. Desta vez sei o que tenho a fazer.

Querido amigo, vou dar-lhe tempo. Vou deixar o jantar para mais tarde, aguentar qualquer dor de cabeça, sentar-me consigo no degrau do edifício, dar-lhe as mãos e vai poder falar-me de como é viver sem a sua companheira de tantos anos, de como é difícil enfrentar uma doença e os tratamentos violentos a que é submetido. Vai poder falar-me da sua solidão, dos seus medos… Vai poder falar-me do que entender…

Eu vou escutá-lo!

 

Cidália Carvalho

(Imagem: Cabeça de Velho, de Candido Portinari)

 
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5.3.09

 


 


Quando se gosta não há desculpa. Não há falta de tempo. Não há cansaço, não há horas. Não há nada que nos impeça de estar ali, ao lado de quem se quer. Para além do trabalho, onde durante essas horas se bombardeia o objecto do nosso amor com mensagens infindáveis e lamechas, tudo o resto é contornável.

A chuva e o sol aparecem quando devem, só para tornar cada momento mais especial. Toda a gente nos lê nos olhos e nos perdoa as ausências. Os amigos sorriem, estão felizes por nós. Nós estamos felizes. E o mundo sorri para nós.

Dorme-se menos. Come-se a correr. Trocam-se horários. Desdobramo-nos em festas e situações, só para podermos fugir e ir ter com. É isso que nos faz acordar com um sorriso estúpido depois de 2h de sono. Não há motivos, não há doenças. Não há cafés nem há compromissos. Não há impossíveis, nem falta de dinheiro. Não há nada que nos separe.

Só há vontade e borboletas. Conversa deitada fora, porque se quer conhecer mais e mais. Não há monólogos, só perguntas. Porque nos queremos actualizar de todos os anos que não estivemos ali. Comentários, cabeças na lua e sorrisos estúpidos. Frases sem sentido, olhares brilhantes. Problemas que deixam de existir. E um único objectivo, estar ali.

As horas são minutos, as frases são palavras e um beijo é tudo. As promessas são eternas, as mãos dadas são compromissos e os segredos são selados com um sorriso cúmplice.

Faz-se das tripas coração, sem sequer se ter consciência disso.

Queremos apresentá-lo ao mundo para que toda a gente veja e se deslumbre, como nós nos deslumbramos. Para que toda a gente entenda o porquê do sorriso sem motivo. E perguntamo-nos como é que algum dia ousamos estar tristes se neste momento temos a certeza de que somos as pessoas mais felizes do mundo.

As músicas têm novas letras, os braços abrem-se e só queremos dançar, enquanto gritamos bem alto que aquela pessoa é nossa. E que nós somos dela. E que assim é que sempre devia ter sido.

Mas tudo tem um propósito. É um sentimento egoísta, só queremos o nosso bem, e esse só é atingido se o outro estiver connosco. Porque é o que somos quando o outro está presente e o que sentimos por ele que importa.

É querer mudar o mundo, achar que tudo é possível, acreditar que sempre devia ter sido assim. Não entender como é que até agora podíamos ter sido felizes se nos faltava uma parte tão importante. E acreditamos que vai ser infinito. Não só enquanto dure, não. Neste momento acreditamos que o infinito é eterno.

As pernas tremem só de o ver chegar. Um sorriso salta só porque sentimos que está a olhar para nós. O coração quase que pára quando ouvimos o nosso nome dito por aquela boca, com aquela voz. Aquela boca que nos dá os melhores beijos. A voz que nos faz suar frio.

Trocamos a festa do ano por cinco minutos com direito a um beijo e um xi apertadinho. Fazemos quilómetros só por um olá. Não conseguimos engolir só porque ouvimos uma palavra bonita. Acordamos a meio da noite só porque queremos ter a certeza de que a outra pessoa está ali, que não é só um sonho bom. Sonhamos acordados, e vivemos em sonhos, porque o dia só tem 24h. Um toque no cabelo que nos faz arrepiar, um beijo que nos faz desejar o mundo. Agarrá-lo para sempre, esperar que o tempo pare e passar a eternidade assim.

E não há desculpa para não estar. Não há desculpa.

Porque quando se gosta…

 


Filipa Pouzada


 

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3.3.09


 


Desde que se mudou para o barraco, junto à estrada, que o barulho e o trepidar dos primeiros autocarros são o seu relógio despertador.

Acordou com a sensação de ter um corpo junto ao seu. Abre os olhos esfrega-os e volta a abri-los... parecia tão real!... Foi apenas o desejo a levar a melhor sobre a realidade, a sua Sacha está lá longe na cidade fechada de Vladivostok.

Desde que o governo instalou a base militar naval que a cidade deixou de estar aberta aos turistas e visitantes. Foi aí que ficou a sua companheira. O que ganha, mal dá para a renda de casa, mas com a ajuda dos pais e os restos que leva da cozinha da base militar onde trabalha, tem conseguido criar as três filhas.

 

Sente frio, o corpo é sacudido por um arrepio, instintivamente cruza os braços e aperta-os contra o peito, está vivo, e pela frente outro dia.

Mais um dia igual a tantos outros desde que deixou a sua terra bem longe, junto aos Urais. Tinham-lhe dito que na Europa a vida tinha outro brilho, não faltava onde trabalhar e os ordenados compensavam a distância. Com alguma sorte podia mandar algum para a terra e bem poupadinho, em pouco tempo poderia dar a Sacha a casa que lhe garantira virem a ter, um quarto grande para as meninas e cá fora um espaço para brincar e pôr uma mesa grande para reunir toda a família nos dias de festa.

 

Varre com o olhar o espaço exíguo onde se protege da chuva e do vento. O frio, esse continua lá; não há manta que aqueça a alma.

Já não se lembra da última vez que alguém lhe dirigiu a palavra, que o tratou pelo nome. Pronuncia-o só para si, baixinho e devagar Iiiggor. Quando miúdo, se a mãe se zangava, chamava-o carregando no “o” e arrastando o “r”, Igórrr. 

Com a lembrança da mãe o rosto perdeu rigidez e deu lugar a um tímido sorriso.

Sozinho, sem pressa de voltar a ganhar compostura, continua a sorrir e com demorado prazer repete baixinho: “min a zabut” Igor...

 


Cidália Carvalho


 

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