Que memória tenho do que fui?
Num exercício nada fácil, arrumo por instantes num canto a consciência de mim. Distancio-me do presente e faço o percurso ao contrário, caminho na direcção do passado. A criança que vejo sente-se confortável no seu mundo. Dele faz parte a família e as poucas pessoas da aldeia onde nasceu. Vai à escola, brinca com outras crianças, ou não brinca, e então tem tempo para pequenas tarefas sem importância. Corre até ao rio, observa os peixes sempre tão rápidos e livres nos seus movimentos. Nunca param para descansar? E porque será que a sua cor prateada brilha mais ao sol? O verde das rãs é bonito, acha no entanto que é uma cor estranha para um bicho, se calhar é para melhor se confundir com as plantas e poder defender-se dos outros bichos. Gosta de as agarrar e senti-las a mexer nas mãos - fazem coceguinhas e, quando por fim se libertam, dão grandes saltos para a água. Splash! Desaparecem!
A horta é um dos sítios que mais a fascinam. Com imaginação vê nos pequenos cursos de água abertos para regar, grandes rios onde as folhas que são arrastadas se transformam em barcos à deriva. Uma pequena elevação na terra cria uma ondulação que logo se transforma nas ondas gigantes que o Vasco da Gama teve que enfrentar e que estão ilustradas no livro da 4.ª classe. E as árvores, sempre tão bonitas na primavera e tão fascinantes quando os seus frutos começam a crescer! A curiosidade de saber como se processa o crescimento leva-a a abrir os pêssegos e as melancias ainda verdes, e nem o ralhete do avô impede que ela continue a descobrir o mundo que a rodeia. A infância é lenta mas a criança não vive com pressa. Não espera ansiosa o dia seguinte - ele irá acontecer naturalmente, se a morte não vier. Esta é talvez a única ideia que a atormenta. Não quer separar-se da família e, ainda que não ache bonito, não lhe agrada que a vida continue sem ela, as amigas continuariam a ir à escola, a brincar sem ela. Inquieta-a esta ideia.
Quando se muda para a cidade, para prosseguir os estudos, descobre que o mundo tem outra dimensão. O lugarejo que ficou para trás, longe de ser o fim é, isso sim, o princípio. A cidade parece-lhe encantadora mas, ainda assim, resiste à adopção de uma nova forma de vida. Observa as diferenças com uma admiração provinciana de quem sabe ser de outro lugar, um lugar bem mais simples. Não sabe como, nem exactamente quando se rendeu, mas sabe qual a razão da entrega lenta e nem sempre pacífica: ser aceite. Ser querida e principalmente ser admirada, sobretudo pelas adolescentes que, como ela, acabam de chegar ao “admirável mundo novo”. Finge uma alegria que não sente e, não fora o rubor das faces que não controla, até parece desinibida e com à vontade para enfrentar os rapazes. Dá-se ares de modernidade começando a fumar. Impressiona parafraseando famosos. Espanta com a capacidade de decorar os pensamentos dos pequenos livros de bolso. Admira a música e os grupos musicais tão na moda, embora tenha outro entendimento sobre o que é verdadeiramente música.
É aceite! Ela não se aceita. O esforço para agradar, cansa-a. Tem saudades de si, da sua simplicidade, de estar tal como é.
A mulher de hoje aproxima-se da criança que foi, vive calmamente o dia-a-dia, não espera ser amada por todos, antes exige o respeito que a todos é devido.
Cidália Carvalho