28.1.11

 

Não consigo imaginar, nunca consegui. Sempre me incomodou a ideia de não poder fazer o que eu quero, não fazer as coisas que eu quero, à hora que eu quero, como eu quero. Ter alguma coisa que me faz sentir que tenho sempre alguém atrás de mim, por cima do meu ombro, a controlar-me. Só de pensar nisso fico incomodada, sinto-me mal.
Houve quem me contasse histórias que até me levaram para lugares desses. Histórias de infância e a autoridade dos pais, de uma irmã ou de um irmão, histórias de um casamento angustiante e destrutivo, histórias de uma doença avassaladora, histórias de reclusão. Novos e velhos, homens e mulheres. Mas acho que até hoje o que me incomoda mais é a falta de visão que estes momentos de sofrimento nos trazem. Eu bloqueio, entorpecem-se-me os sentidos e sou levada pela raiva, o medo, a revolta, e simplesmente perco a noção. Mesmo quando são só histórias contadas por alguém, de alguma forma, dentro de mim, na minha vida, já houve um momento em que parece que me senti assim.
Antes que comece a ver as coisas por outra perspectiva, também eu me afundo no desassossego e deixo de acreditar. Chego a um ponto em que não acredito em ninguém. Viro-me contra todos - o mundo, a sociedade, os que estão ao meu lado e, inclusive, contra mim própria. Deixo de acreditar, de ter esperança. Fico cega. Como se tudo perdesse o valor e terminasse ali, naquele instante. Os dias passam, parece que as coisas nunca mais serão as mesmas. Tudo muda, não encontro o sossego. Percebo mais tarde que a intensidade com que reajo é idêntica à violência e à agressividade com que com os meus olhos vêm aquele acto, na forma como o interiorizo.
Até que um dia acaba, já não surge aquele desconforto, não surge no meu pensamento e já nem me consigo lembrar quando é que foi a última vez que o senti.
Ficou para trás, arrumado nalgum lugar. Até que um dia, há uma nova história e lá estão outra vez as quatro paredes, um tecto, um chão e mais uma porta para ser destrancada, pelo tempo...
 
Graça Silva
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25.1.11

 

“ (…) Mãe, já sei que estás magoada mas não me vires as costas. Tu não. Estou aqui fechado. Enlouqueço! Sabes bem que não sou culpado de tudo o que me acusam… Não te preocupas comigo? Não tens coração? Quando vens ver-me?”
 
A culpa foi nossa. Permitimos-te crescer impunemente. Cobrimos-te a retaguarda e, se calhar nesse gesto, deixamos-te a alma a descoberto, à mercê de um mundo que não conhecias. Protegemos-te “dos outros”, não os deixamos entrar no teu metro quadrado de oxigénio, mas não pensamos que irias procurá-los…. O teu pai encheu-se depressa. Não tolera falhas, tu sabes. Diz que lhe trouxeste problemas sérios pondo em causa o seu status. Que vergonha, o filho de um conhecido cirurgião, preso por roubo e tráfico de droga. Consumidor. Vendedor. Vil. Estou proibida de dizer o teu nome. Todos os dias, sento-me com o teu pai à mesa e sofro, sozinha, a dor da saudade que me faz carpir sem lágrimas… Não posso dizer-lhe que sinto a tua falta, sem ser duramente lembrada de todas as asneiras que fizeste. Das intenções, que nem eu sei entender… Calo o grito que se me prende na garganta.
Se calhar a culpa foi minha. Só minha. Nunca deixei de acreditar em ti. Cada vez que tinhas um ataque de nervos porque te recusávamos dinheiro, insultavas-nos, ameaçavas-nos. Roubavas-nos. Partias o que sobrava. Semanas depois, reaparecias, caías no meu colo e choravas. Pedias mil vezes desculpa, dizias-te arrependido. Eu fechava os olhos e cheirava-te como uma fêmea cheira a sua cria, com um amor transcendente e cego. Eras outra vez pequenino, o meu doce rapazinho, e tudo, tudo eu te perdoava nesse instante. Fi-lo mais vezes do que devia, mais vezes do que o teu pai imagina, ao longo dos anos. Não te poupei de nada, dei-te uma falsa sensação de segurança. Quando tentei travar-te, já era tarde.
 
No dia em que foste preso, vieste procurar-me. Já não te via desde que me tinhas agredido, quatro semanas antes. Recusei-te dinheiro, fui firme. E tu não aceitaste a minha recusa. O teu pai ficou fulo da vida quando acabei por retirar a queixa. Como, como pude perdoar um sacana que agrediu a própria mãe? Sei lá… porque o amo… porque o sinto nas entranhas… Deixei que me abraçasses. Choraste muito, juraste mais ainda. Tudo ia ser diferente, a tua vida ia mudar. Foste preso à porta de nossa casa, no momento em que entraste num carro que não era teu. Quando te vi a ser levado pela polícia, algo morreu em mim. Lembro-me de entrar na cozinha e remexer os armários. Encontrei um produto que a Esmeralda usa para matar os ratos da cave. Levei-o à boca. Estava farta de vírgulas, queria um ponto final.
Acordei, na curva de outra vírgula, no hospital. Ainda cá estou. Desiludi o teu pai pela minha “fraqueza de espírito”, sussurrou-me ele ao ouvido quando me visitou… Diz que herdaste de mim essa característica que te faz ser “reles e sem carácter”. Não tenho forças para retorquir. Não quero estar com ele. Não devo estar contigo. Como pode o amor ser, afinal, o mais temível dos carrascos?
E agora escreves-me cartas, que recebo às escondidas, pelas mãos da Esmeralda, como se fossem de um amante que devo manter na clandestinidade. O carimbo prisional relembra-me a angústia que carrego. A frustração de não poder inverter o sentido das coisas e alterar o presente. O teu. O nosso. Não sei quando irei ver-te mas não há um só dia em que não pense em ti.
 
“Mãe, não me esqueças… Não me abandones à minha sorte. Onde estás?”. Não percebes que estou aí, presa contigo?
 
Alexandra Vaz
 
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21.1.11

 

 

Nunca mais vou esquecer o dia em que a polícia veio cá a casa buscar-vos... Faz hoje 20 anos mas lembro-me como se fosse ontem. Eu era tão jovem na altura que aos meus olhos, tudo parecia normal. O entrar e sair constante de pessoas, as filas de caras estranhas à porta de casa, a confusão, o barulho, a fumarada nos quartos, o afastamento dos avós e dos vizinhos, todos os sinais que são agora tão óbvios, tudo isso para mim era perfeitamente normal. Nessa altura eu não sabia o que eram drogas ou o que era um traficante, só fiquei a perceber melhor mais tarde quando a tia me explicou, depois de eu e a mana termos ido viver com ela.
Vocês não pensaram em nós. Não vos passou pela cabeça que o que estavam a fazer poderia comprometer seriamente a vida dos vossos filhos. E comprometeu... Tudo se complicou para mim depois de vocês terem sido presos. A tia trabalhava muitas horas fora de casa e disse-me logo, assim que fomos viver com ela, que só assinou os papéis e assumiu a responsabilidade porque não queria que fossemos para uma instituição. Disse tudo isto para me explicar que teria que ser eu a tomar conta da minha irmã de 4 anos, levá-la ao infantário, dar-lhe banho, dar-lhe de comer e tudo o que ela precisasse. Eu era só um rapaz de 12 anos.
Tive que ir trabalhar. Com a ajuda de amigos, consegui arranjar um trabalho das dez da noite às duas da manhã, o que me permitiu continuar a estudar. Durante 8 anos, acordava às sete da manhã para arranjar a minha irmã, dar-lhe o pequeno-almoço e levá-la ao infantário/escola. Daí seguia para a minha escola. Ao final da tarde, ia buscá-la, fazia os trabalhos de casa com ela, dava-lhe de comer, metia-a na cama e, com a tia já em casa, saía para ir trabalhar. E foi assim que fomos sobrevivendo.
Adoro a minha irmã, mas como devem perceber não estava preparado para ser pai com aquela idade. Hoje percebo que até me safei, pois ela é uma mulher fantástica, mas poderia não ter sido assim e tive muito medo o caminho todo...
 
Quando vocês voltaram, no final daqueles anos todos, recebi-vos com muita saudade e rapidamente voltamos a ser uma família. Mãe é mãe. Pai é pai. Não é? Mas nunca vos cheguei a dizer o quanto fiquei magoado por me terem roubado a minha adolescência, por me terem obrigado a crescer daquela forma tão violenta... Vocês não pensaram em nós. E isso eu não consigo esquecer. Pensei que este sentimento passaria ao passarmos tempo juntos e com o passar dos anos, mas não, não desaparece. Continua exactamente igual. Vocês não pensaram em nós.
Lanço estas palavras de ressentimento nesta carta que não sei se algum dia vos darei a ler, agora que tudo parece pertencer ao passado, que estamos mais próximos e as coisas correm melhor, porque nem tudo é passado para mim e há momentos que estão bem presentes na minha memória.
 
Ana Gomes
 
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18.1.11

 

Era uma manhã de sol intenso e Manuel repetia os gestos de sempre. Maquinalmente, interrompia os feixes de luz que atravessavam as barras da sua cela e aguardava pelos sons vindos do exterior. Cerrava os olhos e imaginava como seria a vida do outro lado do muro. Ter espaço, vaguear pelas ruas, entrar num café e falar para desconhecidos, correr para o autocarro, sair junto ao rio e sentar-se ao sol e à brisa.
 
Vinte anos de idade. Vinte anos sem ter conhecido a liberdade. Primeiro, aquele tempo a que alguns chamam de meninice. A violência em casa e o quarto do fundo, atravessado por gritos e raios de sol. Aí aprendera o jogo matinal e solitário de se interpor entre a luz que penetrava pelo postigo e a parede, esperando, de olhos fechados, pelos sinais de vida que haveriam de chegar. Vozes das outras crianças, meninos e felizes, diferentes porque se riam.
 
Depois, o orfanato soturno e triste. O choro contido sob a violência nocturna e ignóbil. Os olhos esbugalhados aguardando a protecção dos primeiros raios de sol e o jogo de sempre. A luz reparadora no rosto, energia mínima necessária para suportar um novo dia.
 
E finalmente, bastante mais tarde do que seria de esperar, a revolta, a explosão de violência indiscriminada sobre tudo e todos os que o rodeavam.
 
Só no mundo, enfrentou o julgamento daqueles que antes foram meninos, que sorriram de felicidade ao sentirem-se amados, que viveram em quartos com grandes janelas abertas para o mundo. Pessoas que vaguearam pelas ruas e riram, sentadas ao sol e à brisa. Decidiram que Manuel representava um perigo para a sociedade e não merecia viver a liberdade que nunca chegara a conhecer.
 
Naquela manhã de sol intenso, Manuel trouxera para a cela um texto de Platão. O mito da caverna. E pensou como seria bom ser filósofo e poder escrever sobre o que se passa na cabeça dos outros.
 
José Quelhas Lima
 
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14.1.11

 

- Ah! A liberdade… É a liberdade, a normalidade e a felicidade. Há assim uns termos curiosos que soam bem em diversas línguas. Alguns deles figuram em bandeiras, outros em hinos. Para mim não passam de ilusões estéreis e cretinas.
Ninguém é livre, pelo menos no sentido mais utópico da palavra. Ninguém é normal e, muito menos, feliz. Que é isso de liberdade? Deve ser como a presunção e a água benta: cada um toma a que quer. Neste caso a que pode.
Julgo que a liberdade mais prática reside neste balanço entre o que se quer e o que se pode fazer. Ou talvez não passe daquele ditado que corta a nossa liberdade no começo da liberdade dos outros. No fundo agarramo-nos às migalhas de liberdade que outros vão deixando cair.
- Certo, meu velho, tens toda a razão. A liberdade deve estar algures entre os direitos e os deveres. Do lado dos deveres está a ditadura e do lado dos direitos a anarquia. No meio temos o quê? A democracia? E que bela liberdade nos deu esta democracia…
- Joga!
- Ninguém sai de casa sem a trancar a sete chaves. Oito horas do dia (fora as do trânsito) são para trabalhar. Depois cozinhar, jantar, arrumar, ver novela ou futebol (porque é isso que fazem as pessoas normais), falar, calar, discutir, rir, chorar e dormir para depois acordar e voltar a fechar a casa a sete chaves. Onde está a liberdade dessa gente?
- Não culpes a democracia pela tua falta de liberdade. E joga, bolas!
- Toma!
- A democracia não é para aqui chamada. É tudo uma questão de escolha. A liberdade é a possibilidade de escolheres o que queres para ti. Se podes escolher, és livre; se não podes… Bom, não és. E há também a questão da escolha acertada.
- É complicado. E aqueles que nunca acertam?
- Outros escolhem por eles. Olha para nós aqui, por exemplo. É o que te digo: a liberdade é uma ilusão. Eles julgam-se livres mas têm que arranhar oito horas por dia e segurar bem as carteiras para não ficarem sem elas. Nós só temos que esperar que o tempo passe.
- Então? Não jogas?
- Não. Guarda o baralho e apaga a vela. Ainda nos faltam dois anos e tal.
 
Joel Cunha
 
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11.1.11

 

 

Vi recentemente um filme cujo enredo resumia-se praticamente à privação da liberdade e consequentes efeitos no comportamento humano. O filme chama-se “The experiment” e apesar de ter dois bons actores não passa, no máximo, da mediania. Contudo, achei o “núcleo” interessante dado que o mesmo vai ao encontro das conclusões de muitos estudos realizados. O que esses ensaios nos dizem é que a personalidade do indivíduo em circunstâncias de reclusão muitas vezes altera-se, assim como os seus comportamentos. Assiste-se então a variadíssimos fenómenos nessas circunstâncias mas vamo-nos centrar apenas nos de desagregação (pessoal) e de agregação (principalmente social).

O meio prisional é por natureza um meio stressor. Serve fundamentalmente para “castigar” acções anti-sociais, levando à sua inibição imediata e posterior. O recluso passa a habitar uma casa com regras próprias, quer institucionais, quer culturais, tendo forçosamente de aceitar ambas, com a dificuldade de as segundas não serem explícitas como as primeiras. Ora neste sistema de dupla regra surge frequentemente a desagregação. A individualidade que nos caracteriza no dia-a-dia, traduzida na liberdade de escolha em cada situação apresentada, torna-se muito reduzida fazendo com que o outrora “eu” se torne cada vez mais num “nós”. Esta desagregação pessoal pode inclusive tomar contornos psicopatológicos, tendo a sua expressão mais visível no comportamento, que agora se torna também social. Como exemplo extremo temos os motins prisionais, em que o individual torna-se uma consciência comum, orientada também, pelo menos, por um objectivo comum.
E assim, paradoxalmente, faz-se a ponte com os mecanismos de agregação. No meio prisional a adaptação do indivíduo ao contexto requer, como vimos, a desagregação de certos traços pré-encarceramento em detrimento de outros. Existe na esmagadora maioria dos casos a necessidade implícita do estabelecimento de uma rede social, que diferentemente da rede social existente em contexto social normalizado, dá prioridade a relações onde se obtêm proveitos específicos. Estes proveitos não são apenas de índole material mas também tais como segurança ou estabilidade.
Desta dicotomia adaptativa resulta então que os mecanismos de coping do indivíduo são diariamente postos à prova num contexto de reclusão, reflectindo-se prioritariamente nos seus comportamentos e de modo mais subtil na sua personalidade. Certo, certo, é que a experiência de privação da liberdade transforma qualquer um.
 
Rui Duarte
 
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7.1.11

 

Lembro-me de que, neste período, os reclusos ficavam mais agitadas com a tal esperança de, nesse ano, poderem ir a casa passar o Natal com a família. Alguns confirmavam que lhes tinha sido concedida uma precária prolongada, regozijando de cinco preciosos dias fora dali! Outros sabiam que este, fora já aproveitado na festa de Natal da prisão, que tinha sabor a liberdade, pelo menos, quebra na rotina diária. Outros, enganavam-se, ainda na esperança de poderem ir a casa.
 
Lembro-me de sair todos os dias da prisão, enquanto eles recolhiam às celas. Afinal, para mim era apenas uma passagem de aprendizagem profissional. Para eles uma estadia. De aprendizagens também. Umas, menos boas; outras, melhores. Recordo-me da primeira vez que lá entrei.
Lembro-me sobretudo dos reclusos. Mais de uns do que de outros. Grupos de homens enfiados num espaço físico, com regras próprias, protocolos, burocracias, submundos. Homens com face diurna e face nocturna. Lembro-me de histórias de vida de homens banais, com percursos desviados, de erros cometidos. Homens com famílias, de família. Homens. Pessoas como eu, com sonhos, medos, alegrias, tristezas. Humanos.
Aprendi a face humana da prisão. Nem todos eram tão humanos assim. Também nem todos eram capazes de lidar facilmente com a prisão. Nem todos têm a mesma capacidade de se adaptar. Talvez, por isso, nem para todos a prisão seja um hotel, como por aí se diz. Para uns talvez seja o melhor que lhes aconteceu. Sim, para uns, sair em liberdade pode ser um terror. Mas, para outros, permanecer na prisão torna-se o horror. Em todos os sentidos. Físico, sexual, mental e psicológico. Percebi, sem perceber, que é como um jogo. Cuidado em quem confias, cuidado em que te metes, cuidado com quem te alias. Se tiveres sorte em cair em boa graça, talvez tudo seja mais fácil.
Fácil não será, ter saudades de casa. Ser visitado e ver a visita partir e regressar à vida normal cá de fora, enquanto lá dentro tudo, ou quase tudo te é negado. No mínimo, as vontades. Vontade de ir passar o Natal a casa, mas saber que às 18h a cela tem como destino uma longa noite. Nem sempre tranquila. Tudo isto, enquanto cá fora ainda nem a ceia de Natal começou.
 
No meu último dia de estágio tive saudades. Olhei em redor as grades com nostalgia. Os “meus” reclusos olharam-me incrédulos. “Saudades, doutora? Quem me dera ir embora”.
Pois, também eu queria ir, se estivesse na situação deles, mas não estava. Estava dentro da prisão do lado de fora da reclusão. E esses olhos jamais imaginam o que é ser recluso, ninguém imagina, mas todos falam.
Recordo-me, em particular, deste grupo (que espero já estejam em liberdade a encaminhar a vida!) com quem trabalhei. Os “meus” reclusos. Das sessões, das opiniões, das histórias, dos conflitos, da confiança estabelecida. Olho-os e olhava-os pelo nome, e não pelo número de recluso. Eram exemplos da reclusão ao vivo. Nunca os olhei pelo crime, mas sim pelas pessoas que eram. Afinal, não tão diferentes de mim no geral. Numa condição diferente, em absoluto. Via no entanto, na maioria, uma vontade de não regressar. De querer que isso não acontecesse, de pensar em meios para que a prisão não fosse, de novo, morada. Perdi-lhes o rasto. Acredito porém que, na sua maioria, a prisão já não seja uma realidade. Assim o espero. É que a prisão tem como máxima a reintegração do recluso, através da privação da liberdade. Mas, confessamos que peca por defeito. É que entrar, permanecer e sair de novo, pode ter muitos efeitos num indivíduo, mas por si só não implica reabilitação. Muitas vezes, implica o contrário.
 
É verdade que, pelo menos na sua maioria, todos merecem lá estar e serem responsabilizados pelos seus crimes. Mas, apesar de alguns reclusos ainda serem livres de espírito (alguns!), continuam amarrados. Muitos, serão sempre. Já o eram antes de pisarem aquele chão. Mas, não é fácil de todo. E se para mim um ano é muito, imaginar dez, vinte anos de prisão é demais para conceptualizar. Mas, uma realidade para alguns. Todos nós falamos, de “boca cheia”, por vezes, que fulano tal devia estar 30 ou mais anos preso, mas não temos consciência desse espaço temporal. Eu ainda não tenho 30 anos de vida! É como se toda a minha vida tivesse de resignar-se ao mesmo contexto, à mesma rotina, à privação de fazer escolhas. Será que conseguimos mesmo imaginar? Não, não conseguimos. Que estávamos a fazer há 30 anos atrás? E durante todo esse tempo? Onde fomos, o que fizemos, quem conhecemos? O que planeamos? Sim, uma vida.
A privação de liberdade, não se restringe apenas à reclusão, obviamente. Mas, a prisão talvez seja a realidade física de privação de liberdade mais próxima que a maioria de nós poderá vir a ter. Porque crimes há muitos, uns mais graves do que outros, mas nenhum de nós está imune de pisar o risco. Será que temos consciência que a liberdade, é no seguimento da saúde, amor, um dos nossos bens mais preciosos? Não, não temos. Somos adormecidos. E por isso continuamos a acreditar que 20 ou 30 anos não chegam! Desejemos antes, que essa realidade nunca nos bata à porta.
Feliz Natal, na “liberdade” das nossas vidas.
 
Cecília Pinto
 
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4.1.11

 

Sou um homem e sou livre.
Os meus antepassados carregaram nos seus ombros cansados um peso que continua hoje a marcar o meu presente e que traça já pegadas firmes no meu futuro. A História parece negar-me a possibilidade de protestar e reivindicar por aquilo que há de mais básico. Nas reacções dos outros, esbarro-me com a incompreensão fácil, às vezes, até mesmo uma revolta contida mal disfarçada “Mas de que te queixas tu? O tempo da escravidão já vai. És um sortudo!”. Eu sei que sim, mas será o fim da escravatura sinónimo de liberdade?
Eu não me sinto livre quando me olham de soslaio, como se fosse um intruso indesejado invadindo os espaços e confortos seguros dos senhores e senhoras de tez clara. Eu não me sinto livre quando vejo as oportunidades de escolha se irem reduzindo à medida que a minha pele se torna visível, ou quando tenho que provar sempre a tudo, a todos e a toda a hora, que sou merecedor de uma determinada responsabilidade. Eu não me sinto livre sempre que beijo a minha namorada na rua, enquanto passeamos, e me sinto fulminado por olhares chocados com a carícia de peles de cores contrastantes nesse gesto terno.
Sou um homem, sou livre, mas não me sinto nem me reconheço enquanto tal. Enquanto não deixar de me sentir aprisionado pelo preconceito dos outros, que me tolda o espírito e amargura a alma, não serei livre, continuarei a ser apenas um não-escravo.
 
A Liberdade é um direito fundamental reconhecido do Homem. Porém, para alguns homens e algumas mulheres, a dita Liberdade assume ainda hoje a forma de uma luta diária pelo gozo pleno desse direito.
 
Liliana Jesus
 
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