Era uma manhã de sol intenso e Manuel repetia os gestos de sempre. Maquinalmente, interrompia os feixes de luz que atravessavam as barras da sua cela e aguardava pelos sons vindos do exterior. Cerrava os olhos e imaginava como seria a vida do outro lado do muro. Ter espaço, vaguear pelas ruas, entrar num café e falar para desconhecidos, correr para o autocarro, sair junto ao rio e sentar-se ao sol e à brisa.
Vinte anos de idade. Vinte anos sem ter conhecido a liberdade. Primeiro, aquele tempo a que alguns chamam de meninice. A violência em casa e o quarto do fundo, atravessado por gritos e raios de sol. Aí aprendera o jogo matinal e solitário de se interpor entre a luz que penetrava pelo postigo e a parede, esperando, de olhos fechados, pelos sinais de vida que haveriam de chegar. Vozes das outras crianças, meninos e felizes, diferentes porque se riam.
Depois, o orfanato soturno e triste. O choro contido sob a violência nocturna e ignóbil. Os olhos esbugalhados aguardando a protecção dos primeiros raios de sol e o jogo de sempre. A luz reparadora no rosto, energia mínima necessária para suportar um novo dia.
E finalmente, bastante mais tarde do que seria de esperar, a revolta, a explosão de violência indiscriminada sobre tudo e todos os que o rodeavam.
Só no mundo, enfrentou o julgamento daqueles que antes foram meninos, que sorriram de felicidade ao sentirem-se amados, que viveram em quartos com grandes janelas abertas para o mundo. Pessoas que vaguearam pelas ruas e riram, sentadas ao sol e à brisa. Decidiram que Manuel representava um perigo para a sociedade e não merecia viver a liberdade que nunca chegara a conhecer.
Naquela manhã de sol intenso, Manuel trouxera para a cela um texto de Platão. O mito da caverna. E pensou como seria bom ser filósofo e poder escrever sobre o que se passa na cabeça dos outros.
José Quelhas Lima
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