O tempo rasteja, caminha, dança e voa, não necessariamente por esta ordem, num frenesim desenfreado e enigmático. Andei décadas “aos papéis”, a tentar adivinhar como e quando, e só agora percebo que ele passa, na velocidade certa, em todas as fases da nossa vida. Quando somos muito jovens, cada dia parece uma eternidade. A ansiedade em ser adulto é tão grande que às vezes nos consome. “Quero crescer. Quero crescer depressa.” E a vida faz-nos a vontade. Chegados a adultos, percebemos que tudo mudou: a nossa percepção do tempo, as expectativas, os sonhos que nos dilaceram, as dores que nos libertam. Tudo. Se tivermos sorte - eu tive - apaixonamo-nos por alguém que nos enche as medidas e nos devolve, numa simbiose perfeita, o sonho de uma vida em comum. Todavia, por mais que alguém se projecte no futuro, dificilmente consegue imaginar o seu aspecto, as suas vivências, na idade maior. Fiz esse “exercício” várias vezes mas, ainda agora, tenho dias em que acordo de manhã e me olho no espelho, e não reconheço aquela velhice na pele. Não sou eu ali reflectido, mas sim aquele rapaz de pouco mais de três décadas, tão vívido na minha memória, que vivia à boleia de um tempo que nunca foi seu.
A idade maior instalou-se, juro que não dei por nada. Equacionei tanta coisa para mim nesta etapa, menos estar só ou sentir-me, cada vez mais, frágil e assustado. Descobri, por exemplo, que não gosto dos dias negros e chuvosos. Quando acordo, abro a janela e a casa permanece na escuridão, vejo a morte na penumbra. Nesses malditos dias escuros, sinto-a junto a mim e morro de medo de que não seja apenas uma visita, e ela não queira regressar sozinha. Então, ainda que chova, faça frio ou me doam coisas no meu corpo que eu nem precisava de saber que existem, forço-me a sair de casa. Misturo-me com a multidão, esperando assim ludibriar a morte e prolongar a minha estadia. Não gosto da solidão, lido muito mal com a falta da minha “metade” de uma vida inteira mas, ainda assim, não me leves a mal, não tenho pressa em te seguir. Muitas vezes te chorei na praia, quando a saudade já não cabia dentro de mim. Gosto de chorar junto ao mar porque só aí as minhas lágrimas parecem pequenas… Mas hoje não quero chorar. Hoje o dia dói.
Hoje está um desses dias negros e pesados. Estou particularmente melancólico. Saí de casa e entrei num autocarro onde, abrigado da chuva, pude ver e ouvir gente. Ao meu lado, sentou-se uma jovem que me sorriu. Não sei por que razão lhe disse o que sentia… Talvez o sorriso dela tenha desvanecido a minha angústia reprimida, tornando-a tão leve que me saiu pela boca. Confessei-lhe, baixinho, que nestes dias sentia a morte presente e que ansiava pelo sol, para alumiar a escuridão. Ela olhou-me nos olhos e disse-me que a morte caminhava com todos nós: novos, menos novos, ricos e pobres, homens e mulheres, desde que nascíamos. E que nos levava, indiscriminadamente, quando nos saía o bilhete premiado. Não consegui deixar de sorrir e, quando me retribuiu o sorriso, senti que havia mais sol sobre mim.
Regressei a casa, ainda chovia. Assim que entrei, lá estava ela na penumbra. Não senti frio, não tive medo. Disse-lhe: “Ah velhaca, hoje não é o meu dia, não tenho o número premiado. Volta amanhã.”
Alexandra Vaz