11.10.11

 

Luís já cumprira seis anos da pena a que fora condenado. Esteve todo aquele tempo no mesmo estabelecimento prisional, na mesma cela. Os seus companheiros de cela foram mudando. E houve mais mudanças, algumas que o Luís observou, outras, lá fora, que nem consegue imaginar. Ia ter agora a sua primeira saída, o seu primeiro fim de semana a tocar a liberdade, dois dias entre pessoas que não fazem parte do seu mundo atual.

Nos primeiros três meses de prisão recebeu algumas visitas, do irmão e de um amigo de infância. Subitamente, desapareceram e não teve mais notícias nem visitas. Revoltou-se, culpou-se, resignou-se e habituou-se ao seu novo mundo, um mundo diferente, um mundo bem pequeno, com poucas caras.

A reeducadora não conseguiu encontrar o irmão, único familiar que conseguia referenciar. Para sair, tinha de ter uma referência, tinha de ter onde ficar. Mas quem referenciar? Mas onde ficar? Nos últimos seis anos só tivera os seus companheiros de cárcere e o pessoal prisional, só conhecera aquela cama dura onde deixava o cansaço da longa espera e a angústia da vida interrompida. A sua solidão, o seu isolamento, o seu abandono, pareciam querer contrariar todo o esforço de bom comportamento. Mais uma vez a reeducadora deu uma ajuda e conseguiu uma vaga n’A União. Estava tudo combinado: o Luís ficaria num quarto durante a sua saída.

No Luís, a ansiedade e a confusão debatiam-se. Tudo lhe parecia novo. O sorriso do guarda, sair o portão, ter dinheiro no bolso, entrar num autocarro, dirigir-se a um destino, com um papel na mão com uma morada escrita. Os carros, como estavam diferentes... mais redondos, mais coloridos. E as pessoas… as roupas eram diferentes.

N’A União mostraram-lhe o quarto. Era simples, mas parecia-lhe cheio de coisas e de conforto. Luís estremeceu de surpresa quando lhe entregaram a chave do quarto. Há tanto tempo que não pegava uma chave… Procurou na memória um momento como aquele, em que guardava uma chave que era sua, na algibeira; já não consegui encontrar.

Luís tinha fome. Sentiu vontade de, ao fim de seis anos, comer sozinho, longe da presença de outras pessoas. Saiu à rua procurou uma loja onde pudesse comprar comida para levar para o quarto. Encontrou um supermercado e entrou. Espantou-se com cada expositor, com cada prateleira, demorou-se a contemplar e a analisar cada artigo. Encontrou coisas que já não recordava existirem, de que há muito deixara de necessitar. Ficou ansioso por ter de escolher, mas escolheu, com brilho nos olhos e alegria no coração por de novo poder fazer as pequenas e quase inocentes escolhas do dia a dia.

De regresso ao quarto, experimentou deliciado um jantar a sós consigo mesmo, escolhido por si. Esticou-se na cama, fechou os olhos e sorriu. Não lhe pesava o passado. Ainda não lhe pesava o futuro. Sentiu a chave cair-lhe do bolso, para o colchão e o baixo ruído metálico rodopiou na sua cabeça. Sorriu. Percebeu que voltava à vida. Como mais ninguém, naqueles momentos, compreendeu os sinais de vida que, subtis e despercebidos, há em cada gesto, em cada objeto. Pouco depois adormecia, embalado pelo calor das suas descobertas. Dormiu o sono dos justos.

 

Fernando Couto

 

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