A determinação a comandar os passos. Os passos mais rápidos à vista da ponte. À vista do fim. Observa o rio que corre lá em baixo, calmo, silencioso, não fossem os reflexos prateados da lua a denunciar os leves movimento das suas águas e dir-se-ia parado. Ela, sempre turbulenta, é atraída por esta calmaria. Lá em baixo, as águas calmas e prateadas fascinam-na.
Afasta-se do gradeamento, olha em volta. Ninguém! Foi assim toda a sua vida e é assim no seu derradeiro momento de vida. Ninguém!
Tira os sapatos e alinha-os um com o outro. Um saco com o telemóvel e o bilhete de identidade colocado ao lado dos sapatos. O alinhamento dos objetos, num momento destes, é patético de insignificante, mas continua a querer pôr ordem à sua volta.
Sobe para o gradeamento, olha novamente o rio.
Lá em baixo, as águas calmas e prateadas chamam-na. Aproximam-se. Sente a força da gravidade. Luta contra essa força. Quer recuar, sentir novamente os pés em cima da ponte, dominar os seus movimentos. Tarde de mais. Sente frio. Tem medo.
Vê as águas calmas e prateadas abrirem-se. Engolem-na!
Deitada no chão. O rio de águas calmas e prateadas ali ao lado. Cabeças debruçam-se sobre o seu corpo, movimentos rápidos sem som, uma luz azul a acender e a apagar. Parece-lhe estar no centro desta agitação. Fecha os olhos.
De volta à vida. O renascer é doloroso. Odeia-se pelo insucesso, desilude-se mais uma vez consigo mesma, zanga-se por a terem resgatado. No hospital todos se empenham numa luta para lhe salvar a vida. Uma luta na qual não quer participar. Os profissionais da saúde trocam olhares, de preocupação umas vezes, de esperança, outras. Zelam, observam, cuidam dela. Não desistiremos, garante-lhe uma enfermeira. Sente-se acarinhada. Rende-se.
Os outros doentes olham-na como se fosse diferente, comentam o seu caso, “quis pôr termo à vida”. Enganam-se. Ela também se enganou. Não se pode acabar com a vida onde ela não existe. Não quis acabar com a vida, quis acabar com a morte que havia dentro dela. Enganou-se quando pensou que a vida se esgotava nas contrariedades, nas angústias e tristezas que tantas vezes a assaltavam, ou na solidão que se lhe impunha. Enganou-se quando optou, obsessivamente, por se magoar mortalmente. Não se recorda de alguma vez se ter esquecido de si e ter olhado à sua volta. Nunca cativou ninguém, não conheceu a gratidão, o amor, a amizade.
Interiormente, tem muito trabalho para fazer e, quer fazer, porque não lhe salvaram partes do corpo - salvaram-lhe a vida.
Cidália Carvalho