28.9.12

 

Fecho a porta de casa, abro a porta para a solidão… Tanto mundo lá fora, tantas vidas… Rodeada por cima, por baixo e pelos lados de lares recheados de gritos, choros e risos. Borbulham durante breves momentos… começam a esmorecer até se desligarem pelas longas horas da noite… Horas que demoram séculos.

E procuro-me… Onde está aquela menina repleta de sonhos, cheia de força e de vida?

Via-me desde pequenina com família grande, casa cheia, pequenitos a correr, a pular, e eu a tratar de tudo, da casa, das crianças, da comida…

 

Sonhos tão cheios de vida e agora… vida tão cheia de nada…

 

Como vim parar a esta casa tão vazia? Como me tornei neste monstro tão cheio de medos, de ansiedades, de estados depressivos? Porquê eu? E onde é que eu errei? Serei assim tão péssima pessoa para merecer ficar sozinha?

 

Ligo a televisão: as novelas distraem-me… Ainda bem que tenho tantos canais para me absorver!… e as horas vão passando… e por breves momentos abstraio-me de mim para “viver” a vida dos outros… A televisão vai cansando…

Ligo para a “Voz de Apoio”. Uma voz amiga e interessada que me ouve os lamentos e acompanha-me durante um tempo… Tenta ajudar-me… mas eu nem quero pensar…

Ligo o computador: e-mails só de forwards, no facebook nada de novo e ninguém com quem conversar… Olha! Está aqui alguém!… Já não falo com esta pessoa há tanto tempo!… Mas não tem mal, vou falar com ela para não ficar aqui sozinha!

Um pouco de conversa fora… E… todos se foram…

 

Ai… ainda 1 da manhã!… Faltam tantas horas para tornar a sair desta casa… Quero dormir… Mas tenho tanto medo… e tanto frio…

Volto a mim e perco-me outra vez na solidão, nos sonhos de quem eu gostava de ter sido e não sou, no oposto completo que eu recebo e enfrento diariamente…

Não sou tão má pessoa assim, pois não? E porque não tenho ninguém? Porque estou tão longe de mim e tão longe do mundo?

 

Ana Lua

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25.9.12

 

 

“Amar é querer estar perto, se longe; e mais perto, se perto.”

Vinícius de Moraes

 

Luís caminhava lento na pérgula, com o mar à sua esquerda - cinzento esverdeado, um pouco revolto sob uma nuvem larga e espessa, e a chuva miudinha a colar-se-lhe no rosto. Sempre gostara daquele lugar, de nele ver aquela luz parca de dia chuvoso, de ali sentir a chuva a tocar-lhe a pele e o cabelo, de a sentir escorrer-lhe pelo corpo, de encher os pulmões com o cheiro da areia molhada. Era um dos momentos em que conseguia estar longe da sua vida, retirar-se dela, e ficar apenas na sua condição de animal, ele e os elementos, rendido, seduzido e apaixonado por aquela grandeza, por aquela beleza. E quando conseguia estar assim, mano a mano com a Terra que o suportava, conseguia ter uma visão interior perfeita, observar-se e reconhecer-se com todo o rigor e pormenor – apenas sentimentos e emoções.

Descera a rampa e caminhava agora para a entrada do molhe, para renovar a visão das ondas a precipitarem-se violentamente contra o obstáculo de granito, a galgarem-no, a finalmente caírem, desamparadas, do outro lado, diluindo-se no mar, recompondo-se em si mesmo. Luís necessitava de aprender a fazer isso – diluir-se e recompor-se em si mesmo. Mas não tendo a mesma natureza fluída do mar, como consegui-lo?

Parou na entrada no molhe, em posição de ter uma visão completa, perfeita, sem o ruído de outros humanos.

Sentia estar tão longe… Quando estivera perto dela, bem perto, sentia que nunca estava suficientemente perto, ansiava por se aproximar, por estar cada vez mais perto, por se unir a ela, por se fundir com ela. Agora, sentia que estava longe e que essa distância não cessaria de aumentar, de os colocar cada vez mais e mais longe. Com igual ansiedade queria colocar um limite naquela lonjura insaciável. Queria abrandar aquela dor, aquele sentimento que o corroía, inflexível, em círculos, de dentro para fora, sem cessar.

“- Já nada sinto por ti. Estou apaixonada por outro homem. Está tudo acabado!”

Acabado? A distância, a dor, começaram agora.

No contínuo cinzento de céu e de mar, desenhou-se de repente um risco, quebrado, intenso, aceso. Uns segundos depois ficou sacudido pelo estrondo. Uma gaivota gritou, assustada.

Como colocar longe o que está tão perto? Como trazer para perto o que está tão longe? Como recomeçar?

 

Fernando Couto

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21.9.12

 

No sentido abstrato da palavra, estar longe aplica-se a diferentes contextos. É um presságio multivariável de acordo com o conetor em apreço. Gostava, outrossim, de empregar este termo num contexto competitivo, e assim fácil de mensurar, propício a avaliação de desempenho segundo metas previamente estabelecidas.

Rabiscando um sistema de desempenho dos estudantes do ensino superior, dentre várias razões, os que estão longe tem que ver com um baixo nível de preparação educacional nos ciclos de ensino antecedentes arrastando-se até ao nível superior, educação de base ou familiar, incipiente quadro de valores morais e éticos da sociedade incluindo a cidadania, entre outros, fatores estes que condicionam o desempenho do estudante sujeito a avaliação.

Estar longe, ou em oposição estar perto, é um indicador que avalia o nível de desempenho real face ao considerado médio ou aceitável, dependendo da escala de avaliação. O afastamento do desempenho real face ao desempenho expetável evidencia algum desvio que, por sua vez, periga uma formação sólida e robusta, requerendo amiúde medidas de contigências para evitar efeitos nevrálgicos.

A área financeira mensura o risco e recorre como antídoto mais eficiente com vista a atenuação dos seus efeitos, à adoção de medidas de diversificacão. O que seria então a diversificação, no caso do desempenho de estudantes do setor de ensino superior?

Estabelecendo uma analogia, análise dedutiva, entre o campo financeiro e o caso do desempenho dos estudantes do ensino superior, diversificar seria fortalecer a preparação educacional para um melhor domínio de conteúdos tirando proveito da facilidade e acesso a informação por via das TIC. Realça-se o papel da preparação individual na superação das fragilidades estruturais acima citadas.

E, para não estar longe, voltando ao ponto de partida, migrando das finanças à saúde mental, subsiste uma nuance: se cada um for melhor e mais competitivo, individualmente, poderá contribuir para a elevação da sanidade mental em geral.

 

António Sendi (articulista convidado)


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18.9.12

 

Estar: Encontrar-se num determinado local.

Longe: Indica grande distância, no espaço ou no tempo.

 

Mas o espaço e o tempo não são apenas uma ilusão inerente à mente?

Se um ser se sentir num lugar, o seu mental faz com que não possa negar a existência de um lugar, assim como a de um momento presente. A própria física compreendeu que sob certo ponto de vista, o espaço é mensurável, relativo e finito, mas sob outro, ele é incomensurável, absoluto e infinito.

Pensar em termos de espaço implica a ideia do aqui e do ali, associado a uma ideia de ser, algo em que alguma coisa existe. Mas se estivermos apenas em consciência, deixamos de estar num lugar e a noção de espaço deixa de ter sentido.

Assim sendo, talvez seja mais interessante subsituir Estar longe por SER.

 

Vanessa Pinto (articulista convidada)


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16.9.12

 

Quisera eu ter a coragem, frontalidade, humildade, moralidade e inteligência emocional de algumas destacadas figuras, ilustres, do nosso meio. Estes são apenas, alguns aspetos, mas suficientes, assentes e caraterísticos de homens que foram abençoados pela sua inteligência, e assim espalham suas convicções a nós outros. Suas vivências são verdadeiras campanhas de peregrinação espalhando luz onde abunda incerteza.

Quem não conhece ou reconhece algum líder, não tem olhos de ver. Conhecer até é mais difícil, depende da sorte, destino de cada um e dos seus gostos. Agora, reconhecer (e assim admitir) é um ato de bom senso, pois exige algum sentido de abstração e isenção na análise pontual e factual dos parâmetros de aferição e distinção das pessoas pelas suas qualidades. Defeitos acompanham as qualidades como é óbvio, aliás a imperfeição é maior certeza quanto a morte relativamente ao ser humao, admitamos!

Estes ilustres gozam de sanidade mental distinta. Como todo bom motor, sabem calibrar as funcionalidades de ativação, no momento de produção da atividade intelectual, e de relaxe no momento de renovação. Cada momento é igualmente importante, e funcionam com uma conivência e reciprocidade totalmente complementares. Provavelmente, num e outro momento, na apreciação de muitos (os comuns), os líderes podem passar-se por pessoas com insanidade mental.

Os líderes muitas vezes são tidos como pessoas extremistas ou incomuns, porque os comuns não os entendem, não alcançam o seu virtualismo e não se dão o tempo de formar ideia própria senão fruto de especulações materialmente irrelevantes, subjetivas e infundadas, portanto, fora do parâmetro do verdadeiro conhecimento, muito além, situadas num nível bastante inferior da escala do conhecimento, designado de crenças.

Infelizmente, as sociedades intoxicadas são como verdadeiras autoestradas de crenças que colidem a alta fluidez. Escasseam-se, estrategicamente, os espaços para debates, troca de ideias, onde se produzem consensos, enfim, formação do conhecimento. A redução de massa crítica retira qualidade das tertúlias, assim, os debates perdem profundidade, os consensos perdem as bases lógicas de aferição e as respostas aos problemas são perfeitamente infundadas voltando-se sistematicamente ao ponto de partida. Essa “destruição criadora”, no sentido negativo, dá lugar a massificação de murmúrios multiplicadores que redundam em ruídos, pois a crítica é impedida com slogan de evitar represálias.

Nessas condições não se promove o desenvolvimento porque acredita-se que o “consenso” resulta da imposição de ideias pela direção de topo, as quais devem ser cegamente obedecidas antes de consumir e dissecar a informação. Se se promove tão naturalmente a morte intelectual, porque nos posicionamos como colaboradores? Existirão, efetivamente, equipas, grupos, ou ainda comissões de especialidades de trabalho? Caberá a cada um de nós despertar e lembrar-se de saber separar as três partes ou componentes do corpo do humano, sendo que a cabeça estará sempre acima e em cima dos demais.

A luta dos líderes é de proteger os oprimidos e desprotegidos, assgurando assim justiça e equidade social. O conhecimento assenta-se na verdade, a verdade requere consensos. Diante de várias crenças, respetivos elementos argumentativos e uma única verdade, caberá aos decisores o papel de alinhá-las em encontro a uma razão.

 

António Sendi (articulista convidado)


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14.9.12

 

O tema “Estar longe” encaminha-nos imediatamente para a distância física, mas especialmente para a psicológica. Transporta-nos para pensamentos como “… quão triste e desolador é ter alguém perto fisicamente mas a quilómetros de distância de nós”. As razões? São muitas. Ou porque não há entendimento, ou porque os objetivos e os interesses são diferentes ou porque o caminho torna-se naturalmente diferente. Um lugar-comum….

 

Não tendo particular interesse nesta abordagem, talvez seja mais oportuno lembrar algo que é ESSENCIAL numa relação próxima e de cumplicidade. O abraço. O toque. Algo que não é possível dar quando há distância física e é MUITO difícil dar quando há distância mental. O toque apresenta, no entanto, um sem número de benefícios. Salvaguardando as diferenças culturais, o toque em geral, e o abraço em particular, pode afetar positivamente o corpo, a mente e o espírito de outro ser humano. Embora tenha sido demonstrado que as diversas formas de toque expressivo fornecem benefício em geral e que o toque terapêutico, por exemplo o usado no Reiki, acalma o corpo, mente e espírito, pode acontecer que, quando entramos no espaço pessoal de outro ser humano de uma forma verdadeiramente solidária, com a intenção de ajudar, todas as formas de toque expressivo têm o efeito do toque terapêutico. Se a energia segue o pensamento, então todo o toque intencional vai trazer vantagens.

O toque apresenta um papel vital desde o útero até à velhice. A pele, o maior órgão do corpo humano, tem um papel preponderante no desenvolvimento e manutenção da própria vida. A sensibilidade táctil parece ser um dos primeiros sentidos a surgir.

Sabemos que o toque, seja através da pele, língua, lábios ou mãos, tem uma representação enorme a nível cerebral.

Durante os séculos dezanove e vinte, os orfanatos apresentavam uma taxa de mortalidade muito elevada porque as crianças lá acolhidas não tinham o essencial, o carinho transportado pelo colo, pela carícia, pelo abraço, pelo toque. René Spitz (1887-1974) demonstrou isso através do seu interesse particular no desenvolvimento das crianças e do foco dos seus estudos. A carência emocional parece poder evoluir para depressão, redução da mobilidade, insónia, marasmo e morte.

O toque reflete e vai de encontro às necessidades físicas e psicológicas. Estabelece equilíbrio emocional. Uma sensação de calma e preenchimento, de segurança e felicidade. Pode superar inseguranças, tristeza e até, em certa medida, a própria doença. E sabemos que em estado de doença a necessidade de atenção e contacto físico pode ser maior.

É importante que todos nós tenhamos a noção, a consciência do valor integral do toque expressivo e da importância de encontrar maneiras de incorporar esta modalidade na prática, no nosso contacto diário com os outros, de forma natural, nas nossas relações. Cria empatia e estabelece ligação, reduz drasticamente a distância e promove a proximidade.

 

Em jeito de despedida, sinta-se, respeitosamente e carinhosamente, osculado e abraçado.

 

Ana Teixeira

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11.9.12

 

Discorrer sobre o tema “Estar longe” desagua em falar sobre o que gostamos, amamos ou amámos, tanto que até daquilo que nos fez sofrer chegamos a ter saudades.

    

[ao contrário, nunca estamos longe do que não nos interessa ou interessou, do que não gostamos. O que não nos interessa não está longe nem perto, não existe. Não tem longe, nem distância]

 

E o que é que nos faz a saudade?

Ou melhor, reformulando, o que é que nós fazemos com a saudade? É uma ausência, uma perda, uma espécie de “sugadouro” alienante ou uma espécie de referência? É uma força ou uma fraqueza? É uma raiz que nos alimenta e tonifica, nos ancora ou é um sorvedouro de energia?

Estar longe, a saudade, aguça-nos ou embota-nos o espírito.

Quando podemos, e depende da nossa vontade, voltar a “estar perto”, às vezes é bom estar longe, permite evitar o desgaste do dia-a-dia e recarregar baterias. Mas… e quando esse “regresso” não é possível? De que nos serve a memória, a saudade?

Por este prisma nós somos o corolário das nossas memórias, saudades, do que está longe – no tempo e na distância – potenciado ou diluído pela “espuma dos dias”.

A memória, a saudade do que nos marca tanto e que está longe, pode ser – naturalmente ou a partir de um maior esforço – a alavanca, o impulsionador do sonho que nos alimenta o presente e nos traz horizonte para o futuro.

Será, assim, o fermento da vontade de lutar, a força de querer a razão de ser e de realizar.

 

Jorge Saraiva (articulista convidado)


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7.9.12

 

Sentes-te lá. Lá longe. Onde a vista não alcança e a distância já não avança, e mesmo que isso acontecesse, nem por isso te sentias mais lá. Lá, mais longe. Porque para além dos quilómetros, pesa-te o desconforto de saber que se precisares ninguém estará lá em 20. Nem em 40. Nem em 60. Minutos, claro. Ninguém, pelo menos daqueles que interessam. Daqueles que te fazem sentir estar cá. Bem perto. E eu sei como te sentes lá. Também já lá estive. Sei como os dias passam melhor que as noites, sei como um dia de sol pode fazer diferença, sei como uma simples frase em português, dita por outro, te faz sentir. Sei como, até fugindo do cá habitual, encontrar um sítio que venda tremoços e superbock funciona como o mais eficaz antidepressivo. Lá, o tempo não é como cá. E muitas vezes o clima também... Lá, deitam-se e acordam mais cedo. E almoçam e jantam também. Ou então fazem tudo isto mais tarde. Nunca é “como nós”. Ou às vezes até é no mesmo horário, mas por qualquer motivo insondável, parece que não é. Mas é claro que o tempo acaba por ajudar. A estranheza das ruas, das casas e das lojas, lentamente esbate-se. E de repente parece que é tudo melhor que cá. Começamos a reconhecer as virtudes de anteriores “esquisitices” estrangeiras, integrando-as como tão nossas como o povo que nos acolhe. E, enfim, tornamo-nos estranhos também porque passamos a viver na dicotomia. O que é nosso é bom mesmo que seja mau, porque mesmo reconhecendo que é mau, nunca o vamos querer perder...

 

Sentes-te lá. Lá longe. A vista de tudo já te cansa e parece que não avanças na distância por muitos quilómetros que faças. E mesmo que os faças nem por isso te sentes mais lá. Lá, mais longe. Pesa-te o desconforto da tua certeza, de saberes que se precisares, alguém estará lá em 20. Ou em 40. Ou em 60. Minutos, claro. Mas quem estiver de nada servirá e nunca compreenderá. E eles já te fizeram sentir estar cá. Bem perto. E eu sei como te sentes lá. Também já lá estive. Sei como os dias passam melhor que as noites, sei como um dia de sol pode fazer diferença, sei como uma simples frase certa, dita por outro, te faz sentir. Sei como, mimetizando o habitual, encontrar um sítio que venda tremoços e superbock já não funciona como antidepressivo. Lá, o tempo não é como cá. E muitas vezes o clima também... Lá, deitas-te e acordas. E às vezes almoças e jantas também. Nunca é como “os outros”. Às vezes até é no mesmo horário, mas por qualquer motivo, parece que não é. E é claro que o tempo pode não ajudar. A estranheza das ruas, das casas e das lojas esmagadoramente mantem-se. E é tudo pior que cá. Não reconheces virtudes anteriores, afastando-as de tão tuas e eventualmente de quem te acolhe. E, enfim, tornas-te estranho porque estás a viver na dicotomia. O que é teu é mau mesmo que seja bom, porque mesmo que seja bom estás disposto a perder...

 

Rui Duarte

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4.9.12

 

Sou um mestre do atropelamento e fuga, da vertigem alucinante que derruba princípios e almas. Não me pesa a consciência nem um bocadinho. Finjo amar, finjo ser quem não sou, finjo tudo, até já não distinguir a verdade do malabarismo. Vivo num mundo em que se pede licença para sair da mesa mas se partilha a mulher de alguém, com esse alguém, sem qualquer pudor, a seguir ao jantar. Abraço perfeitas desconhecidas, alimento gemidos, inflamo corações, destruo planos que ajudei a conceber, viro as costas e sigo em frente, sem nunca olhar para trás. Durante muito tempo, achei que me isentava assim do amor, das suas dores, do seu cunho na memória e na alma. Qualquer vestígio de que eu pudesse ter amado, vertia-o em mil braços e pernas e deixava-o escoar-se, em cada madrugada, no regresso a casa. Ainda assim, estar longe, não resolveu nada. Nunca te consegui esquecer, sei-o agora. Dizer que deixei de amar completamente alguém que um dia amei acima de tudo é mentira, mas gostava de aprender a viver na tua ausência. Por mais longe que esteja de ti, sinto-te sempre à distância de um sopro suave na nuca. Aos que nos conheceram juntos, a quem sempre nego a intensidade dos meus sentimentos por ti, digo: “A vida continua. Plantam-se novas sementes, descobrem-se novas cores no horizonte das emoções.” No entanto, apesar da retórica bonita, da gargalhada cúmplice dos amigos e do excesso em que vivo, a solidão chega com o crepúsculo. Nenhum corpo, nenhum frémito, se eleva acima da tua lembrança em mim. Com tanta gente à minha volta, sinto-me cada vez mais só. Faltas-me tu. Falo com agressividade para que não me oiçam gritar o teu nome. Em mim, todos os nomes são o teu. Amo-os e odeio-os, tal como te amo e odeio, neste presente sem ti em que falo do amor com azedume. Apesar das piadas jocosas, a carapaça que ostento cedeu há muito. O vazio que sinto cá dentro é tão profundo que nenhum cheiro sacia a saudade da tua pele. Anseio o momento em que já não te sentirei a falta. Desejo o amanhecer que seja o primeiro de uma nova era: sem amar. Sem te amar.

Hoje sei que perdi a única mulher que alguma vez amei na vida. Deixaste-me porque te parti o coração e ainda te agradeci nunca mais me quereres ver pela frente. Gritei na tua cara, com ar presunçoso, que irias lamentar esse gesto amargamente, correr para mim com o rabinho entre as pernas e que eu jamais te perdoaria. Sei, por linhas muito travessas, que seguiste a tua vida e és feliz, não queres o meu perdão para nada. Sei também que a pior coisa que te aconteceu na vida – a minha sacanice - se veio a revelar a melhor que te podia ter acontecido. Só não me agradeces por isso, porque já nem te lembras que eu existo. Constato, com incontida tristeza, que em ti já não vivo há uma eternidade, mas que distância nenhuma será suficiente para te arrancar do meu coração. Em mim, ninguém permanece. Só tu, não há maneira de te ires embora.

 

Alexandra Vaz

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