Joelhos - Joachim Oppermann
Querido Júlio,
Escrevo-te esta carta porque nem me deste tempo para falar contigo, como devia ser, antes de embarcares. Ainda não fez uma semana que arrancaste daqui, eu sei, vais achar que sou tolinha, mas eu não estou bem, Júlio. Só de pensar, mais três meses sem te ver e com isto aqui entalado dentro de mim, dá-me uma coisinha ruim. Sei que vais ficar furioso mas ao menos só me berras quando voltares e eu, Júlio, se não falo, rebento. Há coisas que tu não me explicas devagar, pareces uma metralhadora, eu pergunto outra vez e tu enfureceste-te todo, Júlio, até te vejo as veias do pescoço a panicar! E o que é mais grave, Júlio, o que me magoa mesmo, mesmo, é rires-te na minha cara e chamares-me atrasadinha, ceguinha e coisas ainda piores. Isso não Júlio, já a minha santa mãezinha dizia que eu era capaz de tudo que eu quisesse, só que às vezes não sei muito bem o que quero, é só isso. E contigo, Júlio, é que não sei mesmo nada. Gritas coisas sem sentido, obrigas-me a ficar calada porque berras como um bezerro sem mãe, mas não sou burra nenhuma, ouviste bem?
Tu vais ter de me explicar outra vez, muito bem explicadinho, tintim por tintim, quem era aquela senhora que encontrei desfalecida no teu colo, na semana da Páscoa. Vais, vais! E não te faças de burro nem me digas que ela é cristã. Até estava a perceber tudo muito bem, aquilo mexeu comigo, tudo que me contaste da senhora, que vive cheia de problemas, que o marido a deixou com dois filhinhos, quase a ponto de se matar e tudo, Júlio, pelo amor de Deus, eu sou humana, mas chamares-lhe católica praticante? Blasfemas, Júlio! Blasfemas! Que o Senhor te perdoe porque eu estou em choque. Católica, Júlio? Católica? Não há católico nenhum aqui na aldeia que não vá à missa do Padre Cristóvão e eu nunca a vi lá, juro por esta luz que me alumia. E eu, Júlio, não falho uma missa, sabes muito bem disso. Dizes que ela reza muito, que passa a vida de joelhos, ó Júlio, pela tua rica saúde, ela nunca na vida se pode por de joelhos com aquela saia tão curta! E aqueles sapatos? Achas que alguma mulher se ajoelhava assim, sujeita a espetar aqueles tacões do demónio no traseiro? Deus pode ser muito grande, Júlio, mas se ela entrasse na igreja naqueles preparos, até Jesus tapava os olhos se conseguisse tirar os pregos das mãos, valha-me Deus. Até me arrepio, só de pensar nisso. E depois tu, Júlio, dentro do carro, atrás da cabana do Tio Afonso, com a cabeça a descair-te e a boca muito aberta. Juro por Deus que pensei que estavas a ter uma trombose, ou uma coisa daquelas que as pessoas ficam com a boquinha ao lado ou entrevadinhas, Júlio! Cheguei a pensar que ias morrer, mesmo completamente, Júlio! Foi, foi isso, vê tu bem a minha aflição. E depois chego-me ao carro e tens a senhora desfalecida no regaço? A saia já parecia um cinto e ela ali, com as pestanas dentro das tuas calças e nenhum de vocês percebeu que ela desfaleceu porque não conseguia respirar, com os vidros todos fechados? Pelo amor de Deus, Júlio, quem é o burro aqui? Quem é, afinal, Júlio, diz-me lá? E já agora, escancaravas a boca porquê? Sentiste-te mal por simpatia ou foi do calor intenso deste Verão antecipado? Disseste-me que ela tinha as tensões baixas e que as tuas estavam no pico do auge. Isso quer dizer o quê, Júlio? Com essa conversa de médico parece que fazes de propósito para me chamares ignorante… E ainda me dizes que eu sou uma cristã de caca, não foi bem assim, foi mil vezes pior, foi com aquela palavra que gostas muito de usar e que a mim me fere a alma. Não era preciso ofenderes-me, Júlio.
Eu sei que tens sido um bom marido, que és um cristão, não precisavas de gritar comigo. E também sei que tens razão quando me acusas de falhar enquanto tua mulher por causa daquelas infeções esquisitas que apanho sempre, pouco tempo depois de tu voltares. Eu juro por Deus, Júlio, que não percebo como é que aquilo acontece. E acredita que dispensava ver-te coçar as partes baixas mais vezes do que é habitual, Júlio. Vá, não te chateies. Não gostas de falar daqueles bichos que de vez em quando trazes das viagens, dá-te logo comichões. Já sei que não tens culpa, que é do calor e das tuas alergias e por estares muito fraquinho, trabalhas muito, eu sei. Até o médico me diz sempre que lá vou aflita, “devia falar com o seu marido”. Até ele, Júlio, deve saber que falas como um doutor embora trabalhes no mar e, vês, preocupa-se contigo. E não Júlio, não é para te castigar que eu tenho aquelas crises no baixo-ventre. Eu sei que não tens culpa de seres um homem sensível e seres atacado pela bicheza, eu sei. Apesar disso tudo, Júlio, eu gosto de ti e de sermos marido e mulher. Gosto, olha, gosto. Até me explode a alma cá dentro. Tu sabes que ainda agora, agorinha mesmo, eu gostava tanto que pudéssemos fazer aquilo, tu sabes, fazer o amor – Senhor me perdoe este pensamento cheio de pecado. Ai, Júlio, carregadinho de pecado... Ainda por cima, já não me dói nada, vê tu bem. Parece mau-olhado de alguma invejosa da nossa felicidade, Deus nos acuda, Júlio. Fico sempre boa quando não estás cá, parece castigo, não parece? Fico triste, penso tanto em ti quando estás embarcado. Não é como dizes, que se calhar eu tenho amantes quando andas fora a ganhar para o nosso sustento. Não é verdade, Júlio, eu dou-te valor e não tenho amantes nenhuns. Nem ao café vou sozinha! Não penso nisso, credo, até tinha medo, Júlio, endoideceste? Eu sei que tu gostas de mim, que te preocupas comigo, que és o sustento da casa, sempre me disseste para ter amigas e para continuar a ir ao encontro semanal para rezarmos e bordarmos. Na verdade, Júlio, de que me posso queixar eu? Eu sei que também tens direito a ter amigos e se dizes que a senhora é só tua amiga, Júlio, eu vou confiar em ti e tentar ser uma boa cristã. Não quero que fiques triste comigo, Júlio, vá lá, não nos quero mudos no teu regresso. Mas pela tua rica saúde, não me grites que me deixas mouquinha, está bem? Diz-me as coisas devagarinho, Júlio. Vou experimentar aquele novo unguento da Tia Nanda e pode ser que, quando voltares, eu possa cumprir as minhas obrigações. Ficas contente?
Desculpa Júlio se fui dura mas estava entaladinha. E, já agora, quando estiveres com a tua amiga, diz-lhe que experimente conversar sentada, com a cabeça para cima, e que não se esqueça de vestir roupa interior. É que se ela insiste em virar o rabinho para Meca, ali no matagal, a mostrar para quem quiser ver o sítio onde o sol não brilha, corre o risco de lhe morder um inseto nas partes baixas e ela, desesperadinha de dor, coitada, cerrar os dentes com toda a força. E olha, Júlio, se ela te desfalece no colo outra vez, a meio de uma crise, com a cabeça enfiada na tua braguilha, ainda ficas inválido pró resto da vida.
Pronto, Júlio, era isto que te queria dizer. Não voltes a partir sem te despedires de mim. Foi como me cravares um punhal no peito, Júlio. Ainda não parei de chorar desde esse dia, tenho este mal-estar no peito que nem me deixa respirar, umas enxaquecas que me matam. Não quero que te sintas culpado, não é isso Júlio, mas, que Deus te perdoe, se entretanto me acontecer alguma coisa.
Recebe um beijo da tua mulher que muito te respeita. E não te esqueças de lavar os pés todas as noites e de pôr os sapatos a arejar, por mais bêbado que chegues. Ainda matas alguém durante o sono, Júlio, Deus nos livre de tal fado. Escreve-me umas linhas quando puderes. Sabes que rezo por ti.
Com muito afeto,
A tua Berta
Alexandra Vaz