Artur é um rapaz de 16 anos que frequenta o 6.º ano. Acorda todos os dias às 6 da manhã, passa a cara por água fria, come uma torrada fria e despacha o leite frio pela goela abaixo. Veste qualquer coisa, agarra na mochila e lá vai ele, apressado, todos os dias, para a fábrica clandestina de calçado, num barraco improvisado nas traseiras de um velho armazém, coser solas. Já faz isto há quase 6 anos, tem a mão certinha, a precisão de um mestre e a rapidez necessária para os pais faturarem. Até há pouco tempo trabalhava durante todo o dia, mas a Assistente Social estragou-lhes o esquema e obrigou-o a ir para a escola. Agora já só podem ganhar as duas horas da manhã e as duas do fim da tarde.
Por vezes, vezes a mais, o Artur chega tarde às aulas. Ora porque "perde o transporte", ora porque "adormece", ora porque "adoece"… qualquer coisa serve para ficar mais tempo a coser sapatos. Mas, atenção, todas as justificações chegam à Diretora de Turma devidamente assinadas pelo pai.
O aproveitamento escolar do Artur é miserável mas o comportamento, na maior parte dos dias, é exemplar. Tem uma necessidade imperiosa de agradar, de pertencer a alguém, de ser aceite pelos professores. Está sempre disponível para colaborar no que for preciso, carregando os livros da Professora de Português, arrumando a estante do material de desenho… Procura, incansavelmente, na comunidade escolar o afeto que há muito lhe fugiu em casa. Mas de vez em quando, aparentemente sem causa que o justifique, adota uma postura diametralmente oposta, rejeitando quaisquer tentativas de aproximação. A cozinheira da cantina chegou mesmo a ser agredida por ele. O Artur tem tanto de doce como de ácido, dependendo do grau de carência ou de revolta com que acorda. É quase visível o turbilhão descontrolado de emoções que mora nele. A doçura é meramente instrumental, usada para comprar pertença a alguém; a acidez serve para eliminar a possibilidade dessa pertença. Este paradoxo é compreensível se olharmos para o Artur como um miúdo perdido, habituado a não pertencer a ninguém, com tanto desejo de pertencer mas com maior receio de ser rejeitado.
Este miúdo, de nome fictício mas apenas o nome, com uma história de vida semelhante à de muitas que grassam discretamente por este país desenvolvido afora, é o resultado de uma educação reiteradamente omissa e negligente, fator que leva a que a perspetiva afetiva sobre o mundo e sobre as pessoas fique gravemente distorcida e, em alguns casos, permanentemente danificada.
O papel dos pais na educação afetiva dos filhos é central e determinante para a formação de caráter. O caráter decorre da segurança, a segurança decorre da pertença, a pertença do envolvimento, o envolvimento do compromisso, o compromisso da responsabilidade, a responsabilidade da justiça e a justiça, por último, decorre do caráter.
A negligência parental não é exclusiva de meios socioeconómicos desfavoráveis. Embora pese, pelas dificuldades e prioridades que lhe estão associadas, a questão financeira não determina o estilo de educação. Também não depende apenas das caraterísticas do miúdo, da maior ou menor resistência à disciplina, da exteriorização de sentimentos, da comunicação… O fator principal na educação dos afetos é a importância que a criança percebe que tem face às pessoas que lhe são mais significativas. Para educar uma criança neste sentido basta que os pais se façam presentes e justos. A presença dos pais do Artur resume-se a alimentá-lo a frio e a justiça, bom, é a que vimos. Aos 16 anos, graças à Assistente Social, tomará a escola conta da minimização possível dos danos. E aos pais nada acontecerá.
Joel Cunha