Na aldeia onde nasci, cada nascimento era celebrado durante vários dias. As famílias rejubilavam em uníssono, como se a criança nascida pertencesse visceralmente a toda a comunidade. Sentiam, sobre ela, uma quota-parte de amor e responsabilidade e, com ela, esperança renovada no futuro. Morriam muitas crianças naquela época, cada nado morto cobria a aldeia com um pesado manto de desalento e dor. A perda era chorada durante semanas, em absoluto silêncio, e genuinamente sentida em todos os lares. As crianças que vingavam eram acarinhadas e protegidas por todos, conscientes da preciosidade daquelas vidas; mas no dia em que eu nasci, não houve festa na aldeia. Chegaram a pensar que eu tinha morrido mas, rapidamente, os ventos da informação confirmaram um destino pior que a morte. Houve até quem comentasse que, uma criança nascida no seio de um casamento não abençoado, só podia ser uma aberração. Com toda a certeza eu era o castigo enviado pelos deuses, pelo dia em que “o meu pai ousou gritar aos céus e desafia-los”.
Incapaz de falar, a minha mãe desejou que as horas seguintes ao meu nascimento fizessem o milagre que o parto havia falhado. Assustado pelo relato inflamado das tias da minha mãe, ou do que foi possível perceber entre gritos e lágrimas que duraram horas, o meu pai não me quis ver. O tempo também não ajudou pois, passadas três semanas da minha chegada ao mundo, todos tinham finalmente percebido que eu era “uma coisa estranha e deslavada”. Nessa altura, curiosamente, o meu progenitor deu de marcha e abandonou-nos aos dois, em casa dos meus avós. Uma semana depois, os meus avós paternos puseram a minha mãe na rua e, apenas por caridade, deixaram-me ficar. Sabiam que a minha mãe não tinha como sobreviver sem meios, sem marido e com uma criança pequena e tão diferente. Os anos seguintes foram tudo menos infância: nunca brinquei com outras crianças, nunca fui à escola; nunca tive um vestido novo, um beijo de boas noites, um abraço que não doesse. Nunca soube o que era sentar-me e jantar em família, com um prato farto, só meu. Eu comia o que sobrava dos pratos de todos, no final das refeições. Esperava até que me chamassem, comia o que tivesse restado e arrumava a cozinha. Ficava feliz quando conseguia dormir sem ninguém me bater. Quis tanto pertencer. Quis tanto entender porque não me amavam. Cheguei a pedir que alguém me explicasse porque havia sido amaldiçoada com esta cor horrível que me fazia tão diferente de todos. A simples menção do tema chegou a valer-me algumas tareias, vezes suficientes para ter deixado de perguntar – mas nunca de querer saber.
Quando fiz 15 anos a minha avó pôs-me na rua. Disse-me que eu já era adulta e que estava na altura de “tratar da minha vida”. Estava tão assustada. Se a minha família não me aceitava, como poderia o resto do mundo gostar de mim?
Sai da aldeia, andei perdida. Vivi os três anos seguintes, completamente sozinha, sem um teto, sem um prato de comida, sem dinheiro, sem nunca me ter sentido pessoa. Num dia cinzento, em que a fome era tanta que dei por mim a sentir ternura pela minha família, decidi pôr fim à vida, certa de que o resto da minha existência seria um sofrimento pegado. Estava cansada de ter medo e de ser diferente. Queria saltar para o desfiladeiro e desaparecer, sem deixar rasto. No dia em que subi à montanha para o fazer, algo extraordinário aconteceu. Uma rapariga aproximou-se, agarrou-me os ombros e fez-me voltar com violência. O que vi deixou-me perplexa: ela era como eu. Nunca tinha visto ninguém igual a mim. Disparei: “mas tu és amaldiçoada como eu... Como podes sorrir dessa maneira? És parva ou quê?” Desta vez, foi ela que se surpreendeu. Lenta mas firmemente, foi-me afastando do precipício enquanto me falava da sua família. Disse que vivia ali perto e que sempre tinha conhecido gente igual a nós. Mais? Havia mais pessoas como nós no mundo?!
A partir deste ponto da história, a narrativa seria longa e até um pouco confusa mas na verdade, tudo o que importa dizer é que, naquele dia, a Isabel salvou- me a vida.
Aquela miúda levou-me para sua casa e conduziu-me a uma sala em que, pela primeira vez, ninguém me cuspiu na cara ou desviou os olhos quando eu entrei. De repente ser branca não era um castigo. Era apenas ser eu própria. Sem medo. Sem vergonha. A primeira vez que estive no meio de uma multidão e ninguém me viu, foi a coisa mais extraordinária que alguma vez tinha sentido. No entanto, apesar de tantas bênçãos, de tanta partilha, senti-me muito revoltada. Quanto mais aprendia sobre a tolerância, o amor, a dádiva e o respeito; mais me doíam as coisas passadas. Quanto mais aquela família maravilhosa me amava, mais eu percebia o quanto a minha própria família me tinha desprezado. E doeu, doeu muito, durante muito tempo, aquilo que me haviam roubado e que eu nem sabia ser um direito meu. Quis grita-lo a todo o mundo para que ninguém passasse pelo que eu havia passado.
Ao longo dos anos a paz foi-me, intermitentemente, visitando. Um dia, senti-a abraçar-me debaixo da pele e, não sei se por isso, se por outra razão qualquer, não voltou a partir. Nos alicerces da pessoa que crescia em mim, foi deixando de haver lugar para dores passadas, gritos ou revolta. Hoje a minha paz não tem cor nem barreiras. Não tem ira nem feridas profundas, exceto quando as reconheço noutro ser humano. Ainda não sou imune à dor que sinto nos outros, não sei se alguma vez serei. A minha serenidade tem cicatrizes que me lembram que fui mais forte do que tudo que já me feriu, mas que não me dilaceram mais. E partilho-a para que outros a sintam também. Para que saibam que o amor vê para lá da cor da nossa pele, do nosso sangue, das nossas crenças, dos nossos bens, dos nossos erros.
Se usasse um letreiro sobre a cabeça quando caminho na rua, gostava que este dissesse, simplesmente:
“Abraço almas, sorrisos e emoções. Não tenha medo. Sofro de daltonismo cutâneo.”
Alexandra Vaz