Confesso logo à partida a minha dificuldade em escrever sobre racismo, por mil razões diferentes. Em primeiro lugar porque, grosso modo, confunde-se racismo com outras questões, que embora associadas, no fundamental não traduzem a pureza do termo. Em segundo lugar, meramente circunstancial, escrevo este texto dias após o atentado ao Charlie Hebdo e às mais recentes notícias divulgadas acerca das ações de Boko Haram, na Nigéria. Em terceiro lugar, poupando-vos às restantes 997 razões, porque detesto o politicamente correto e se existe um tema em que tal está intimamente imbuído, é mesmo este.
Durante algum tempo percorri mentalmente diversos caminhos que poderia trilhar para a escrita deste artigo. A tentação pela abordagem pessoal é sempre forte nestes casos e terá sido a primeira paixão a surgir. Contudo, rapidamente a abandonei. Se paixão implica fogo, ela implica também uma duração limitada no tempo. Um artigo incendiário, toldado pela temporalidade dos acontecimentos (vide parágrafo anterior), seria com certeza mais uma pedrada no charco lamacento em que se tornou alguma opinião publica por estes dias. Os “especialistas” que o façam.
A salvação apresentou-se então em forma de visita ao café. O dito possui talvez 20 m2 de interior, associados a uma esplanada / corredor de passagem do prédio em que se encontra. É principalmente frequentado por moradores dos prédios vizinhos, pessoas de variados tamanhos, cores, orientações e tudo o mais. Não interessa muito. São pessoas. Empregados, desempregados, reformados e situações dúbias de que ninguém tem dúvida. Alguns entram às 8, outros às 20. O que quer dizer que alguns saem do café às 19, outros chegam às 18. Não interessa muito. São pessoas.
Na esplanada de um café estavam três brancos e um preto. O branco que chegou mais tarde demorou algum tempo a inteirar-se do que se falava. Apaixonadamente, diga-se. Um dos brancos falava alto e gesticulava para a sua companhia do momento, um outro branco e um preto. A história que contava era acerca de uma viagem do dia anterior a Lisboa. Presumia-se imediatamente que tal viagem não lhe era habitual. Entre peripécias acessórias, contava o branco no palco, que tinha ido com um amigo a uma discoteca no Terreiro do Paço. Vinha maravilhado... “Ó mano! Não estás a ver as pretas que lá estavam! Até bati mal! Se as gajas daqui fossem lá abaixo, até se metiam num buraco!”
E mais ou menos nestes termos cavalheirescos continuou a deambular entre a memória e a fantasia da dita noite. Conseguiu ainda entabular pelas semelhanças (na sua ótica), entre um segurança preto e um gorila, muito principalmente, diga-se, pelo tamanho e não pela cor. E nesse preciso momento, com toda a franqueza exclamou para o preto que estava presente: “ainda era maior que tu!”.
E assim foi que muito animadamente continuou a conversa, até a mesma derivar para outro assunto que, confesso, este branco já não se lembra. Também, em verdade, muito dificilmente algo ocuparia o meu registo mnésico após o que tinha escutado anteriormente. Isso ou como diria um amigo meu, cabrito de tom mas preto convicto “Não percebeste? És mesmo branco!”.
Rui Duarte