Foto: Serra do Marão - Grupo de Montanhismo Vila Real
Quando o meu pai morreu, disse-me: “deixo-te por herança o Marão”.
Não entendi bem isso de eu herdar uma serra tão grande! Ainda por cima, sempre ouvira dizer: “grande é o Marão, e não dá palha nem grão”. Que iria eu fazer com tanta fraga infértil?
Mas também ouvia dizer, desde pequenina, que para cá do Marão, mandam os que cá estão. Por isso respeitei o meu pai e aceitei a herança; lá fiquei com a Grande Serrania. Enchi os olhos com ela, ou melhor, com a parte que me era possível ver dela, lá da minha aldeia pendurada na colina sobranceira mais bonita do Douro Sul. Enchi os olhos dela nos invernos em que se cobria de branco agreste, nas primaveras em que se enfeitava de neblinas finas, nos verões em que namorava o pôr-do-sol, nos outonos em que deixava o Douro estender-lhe aos pés uma colcha de vinhedos avermelhados.
A parte que me era dado ver já me era herança suficiente, é justo que se diga: o meu horizonte já era largo e abarcava o perfil mais bonito do Marão – sobranceiro às colinas adocicadas pelo rio e domadas pelo Homem, o Marão impunha-se em duas grandes elevações quase simétricas, como dois seios eretos. Até assim, de tão longe e quando a transparência do ar era fina e o sol faiscava sobre as fragas, conseguiam-se distinguir as escarpas aguçadas das suas ravinas! Para que queria eu mais? Aquele era o “meu” Marão. O que o meu pai me deixara, o que eu me habituara a ver todas as manhãs, aquele que, nas tardinhas quentes de verão, refrescava as sombras da minha rua.
E fui crescendo assim, dona, por justo olhar e por legítima herança, da serra que me viu nascer. E era feliz.
Depois cresci e fui mudando de lugar, de miradouro, de ponto estratégico, de ponto de vista. O Marão, em vez de engrandecer, apequenou. Mas o mais estranho é que descobri que a minha joia herdada mudava de forma, de cores, de orientação solar, sempre que eu me movia, na minha busca de vida além-herança.
E agora? Aquilo era tudo meu? Sim, se o meu pai me disse: “pega, o Marão é teu”, e se o Marão era aquilo tudo, aquela extensão irregular, policromática e temperamental de granitos e xistos, searas e vinhedos, pastagens e baldios, tojo e rosmaninho... meu Deus, tanta paisagem! Tantos contornos, tantas feições! Eu era rica! Eu era rica e tinha-me contentado tanto tempo só com aqueles dois enormes seios de pedra defronte dos meus olhos!
Bem, era tempo de reclamar o que era meu: fiquei com tudo. Governei todas as estradas, todos os cumes frios, todos os vales abruptos, todos os montes áridos e todas as colinas férteis, só com o olhar! Ah, agora sim, o Marão todo era meu, de pleno direito! Agora podia conquistar o mundo!
Mas o mundo depressa me disse que não se herdam montanhas que os olhos dos outros também possuem – só herdamos a parte delas que sabemos delinear de cor. O resto é paisagem. O resto corre, no sentido inverso dos nossos passos errantes. O resto muda, consoante a necessidade dos pastos existenciais. O resto, esquecemo-lo, ao capricho dos sonhos de ir mais longe.
Dona, dona, fui descobrindo, eu era só da memória precisa do que amava: aquele familiar perfil, entre agreste, maternal e pedraria, que eu podia tocar com os meus olhos, como se o percorresse com os meus dedos; aquele tesouro imaterial único, só meu, que me servia de paisagem, à data da minha herança. À data da morte do meu pai.
Pai, meu pai. Deixa-me guardar nos olhos tudo o que me deixaste, e na alma, tudo o que eu hei de deixar aos meus filhos.
Teresa Teixeira