Foto: Mount-olympus - Unsplash
Conta-me, quem assistiu, que o meu primeiro ato de independência, o de respirar, foi assinalado com choro e gritos. Não há aniversário meu sem que a minha mãe e a minha tia não recordem os gritos que arrebataram à calmaria aquela noite fria de janeiro. É redundante dizer que não me lembro, mas não há razão para não acreditar que tudo se terá passado conforme contam. Afinal, ainda que com pequenas variantes, não é assim que todos enfrentamos o mundo, gritando para que nos recebam, reclamando atenção e o direito à vida?
Mas, passado o momento violento da chegada, devo ter confiado rapidamente nos adultos que de mim cuidaram, porque também contam que não fui uma “má bebé” e fui uma criança sossegada.
Gritei, e disso já tenho memória, nos intervalos das aulas.
Ao sinal dos professores corríamos para o recreio atropelando-nos uns aos outros e, sem mais demora que o tempo era pouco para a brincadeira, escolhíamos as colegas que queríamos connosco ou contra nós a saltar à corda ou ao jogo das pedrinhas. No extremo do recreio os rapazes organizavam-se e num esfregar de olho lá estavam em grande gritaria a disputar uma partida de futebol. A pacata aldeia ganhava vida com os gritos e as brincadeiras das crianças que apenas as chuvas e os temporais de inverno interrompiam. Na invernia, as encostas dos montes viradas a norte despiam-se para os ventos, ou pelos ventos, e pareciam adormecer. Eu acreditava que descansavam para recuperar forças e exibirem, lá pela primavera, novas searas e novos frutos. Não havia vez que passasse pelo alpendre da casa que não olhasse para essa exibida nudez, tentando vislumbrar o verde, o lilás ou outra qualquer das muitas cores que haveriam de animar novamente o monte e as ruas da aldeia com os gritos da criançada.
Não se distraíam as encostas e, sem atrasos, cumpriam o ciclo. Vestiam-se de verde-claro quando as chuvas medravam as sementes e as obrigavam a rasgar a terra e a mostrarem-se. A semente esvaía-se para dar lugar às plantas que cresciam, e, grávidas de novas sementes trocavam de roupagem e passavam a usar o verde mais carregado. As searas voltavam a ter a minha atenção quando, de amarelo vestidas, ondulavam e sussurravam com a brisa, e aproximava-se junho, época de exames na escola. Mas nem por isso cessavam as correrias e brincadeiras no largo da aldeia.
Do outro lado da rua, por detrás das janelas, as silhuetas da minha mãe e da minha tia movimentavam-se livres e apressadas. Reconhecia as sombras dos meus avós para lá das cortinas por terem movimentos lentos e torpes. Confortava-me esta visão tanto como os gritos de alegria a fingir surpresa por ter sido agarrada no jogo da cabra cega, ou de contentamento por ter ganho o jogo da macaca.
Levaram-me um dia à cidade para lá dos montes que rodeavam a aldeia. Subi-os até ao cume e espantei-me por ver que afinal o céu não pousava neles como parecia acontecer a quem olhasse do sopé. Do cimo abriam-se horizontes. Para lá dos meus montes havia outros e muitos, e gentes e outras aldeias e outras escolas e outras crianças a brincar e a gritar nos recreios. Caminhámos durante horas e o mundo pareceu-me imenso. A grandeza da cidade, a pressa das pessoas e o movimento dos automóveis, sufocavam-me e, só por timidez não gritei, sufoquei o meu medo.
Transpus os montes com frequência e um dia não regressei à aldeia.
Tive sempre esta visão romântica da infância e, muitos anos depois, resolvi satisfazer o desejo de regresso. As pedras envelheceram e as casas tinham mingado, as ruas estavam desertas, a escola estava por terra e o recreio era um campo de ervas tristes, dobradas para a terra, envergonhadas por tamanha falta de beleza. As encostas a norte transformaram-se num matagal desorganizado e sem graça. E, por detrás das cortinas que o tempo escureceu, não se viam as silhuetas da minha mãe nem de qualquer outro ente querido. Partiram. Passaram os montes e não regressaram.
Subi de novo aos montes e o eco no silêncio aumentou o meu grito de solidão.
E, neste texto deixo um grito de saudade.
Cidália Carvalho