31.3.17

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Foto: Woman – Efes Kitap

 

A luz da manhã chegou-se à janela, colou-se ao caixilho, avançou para a ombreia e para o parapeito, deslizou pela parede, tocou na cadeira, raspou no armário e derramou-se sobre a cama, dos pés à cabeceira. Quando lhe tocou o rosto, ele acordou, de repente. Ele gosta de ser acordado pela luz das manhãs de primavera. Deixou-se ficar por uns instantes, imóvel, a sentir a luz nas pálpebras fechadas, no calor que se lhe acendia suave no rosto. Saiu da cama num salto que o levou a bater com os dedos do pé direito na cómoda, que ali ao lado se acomodava para mais um dia. Gritou de dor!

 

Talvez tenha dito um palavrão, logo abafado pelo armário. Acariciou os dedos magoados e percebeu que não havia fraturas. Avançou para a casa de banho. Após algumas funções que ele definiu para si como sendo a melhor forma de começar o dia, e que vou evitar explicar, entrou na banheira. Percebeu que já estava atrasado. Abriu a torneira e a água precipitou-se sobre ele, como só a água sabe precipitar-se. Instantaneamente percebeu que, na precipitação, esquecera de rodar o manípulo para o lado da quente. Gritou de frio!

 

As manhãs de primavera provocam-lhe fome – é sabido. Na cozinha, percebeu que tinha apenas uma fatia de pão. Excelente para uma torrada. Ligou a torradeira que, nas última semanas vinha a torrar-lhe a paciência, ora não torrando o pão, ora queimando-o. E dedicou-se a pensar sobre o que preferia colocar na torrada. Marmelada, manteiga e um lençol de geleia, doce de mirtilo ou doce de limão, limão, limoeiro, que lindo estava o limoeiro nessa manhã… e os amores-perfeitos logo ao lado, tão perfeitos, sobre os quais se debruçavam os narcisos procurando espelhos, todos inebriados com o cheiro das rosas… a queimado… Gritou de raiva!

 

Caminhava e sorria. Era primavera, estava sol, o ar estava frescamente a aquecer. Sorria e caminhava. Olhava as pessoas na rua, apressadas e com roupas leves. Caminhava e sorria. Olhava os decotes e as pernas descobertas. Sorria e caminhava. Atravessava as ruas como que esvoaçando, apreciando aqueles prodígios da primavera. Caminhava e sorria. “O metro está hoje encerrado por motivo de greve. Agradecemos a sua compreensão”. Gritou de fúria!

 

Atrasado e indo a pé para o trabalho. Até era bom, pois assim fazia uma caminhada naquela deliciosa manhã de primavera. Excelente para perder algumas das gorduras que lhe engorduravam a barriga e outras partes. Na esquina, uma criança gritava com a mãe. E como gritava forte… Não tinha mais de cinco anos. E a mãe envergonhada no silêncio. No tempo em que fora criança, não era assim. Os olhos colados na dinâmica da progenitora e do seu rebento. Quando ele era criança, as mães é que gritavam com os filhos. E chamavam-lhes nomes. Alguns nomes, elas chamavam a elas mesmas, certamente entusiasmadas com a gritara. Mas agora anda tudo ao contrário – são as crianças que gritam. E o poste ali tão perto do nariz… Gritou de dor (mais uma vez) e de desespero (por não ter sensores de proximidade, como os carros)!

 

E foi passando assim aquele dia de primavera. Apreciou o ar quente, a luz, o sol, as pessoas, e celebrou a alegria. Gritou de alegria (em silêncio) por tantos prodígios que um dia assim revela. Por vezes distraia-se e gritava (baixinho e envergonhado) ao tocar o seu exuberante nariz, burilado a poste.

 

Avançando, que todos temos afazeres…

 

Quando o sono o assaltou, resolveu deitar-se. Mas antes, assegurou-se de que a janela estava preparada para receber a luz do dia seguinte, que também deveria ser de primavera. Já com o pijama colocado, esticou-se na cama. Esticoooouuu-se e espreguiçou-se, que é uma coisa muito boa, sobretudo numa noite de primavera. Gritou (longamente) de satisfação.

O vizinho bateu na parede e gritou (irritado):

- Não te estiques!

 

Fernando Couto

 

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29.3.17

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Foto: Seagull - 2905102

 

Quando dei por mim, todo o meu ser jorrava para o mundo um surto de emoções. A minha voz percorria tudo à minha volta, atravessava as paredes, penetrava a terra e enchia o céu de um tenebroso trovão. Tal como o pássaro que, de asas abertas, abraça o ar para levantar voo, eu cobria de braços estendidos o universo que me pertencia.

 

Subitamente tomo consciência do meu ato e fico espantada com a força do som que emana de dentro de mim. Não sei onde fui buscar tanto fôlego mas não é hora de parar. O estrago já está feito e ainda há muito para libertar. Conscientemente, ganho novo lanço, empenho o meu corpo na sua desencarceração e descubro um atordoante prazer em soltar-me até ao ponto mais alto.

Lentamente, vou perdendo altura e sinto-me a planar acima das minhas amarras. Deixo a minha alma varrer os últimos vestígios de ar. Desço devagar à terra onde o meu ser e o meu corpo se unem em sincronia.

 

Olho à minha volta, expressões de incompreensão questionam esta minha repentina forma de expressão.

Vazia e de joelhos ao chão, despeço-me em silêncio desta catarse que se evapora na minha exaustão.

Agora sim posso recomeçar.

 

ESM

 

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27.3.17

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Foto: Scream - Mandyme27

 

Sobre o Grito:

Deu origem a uma obra de arte norueguesa que retrata o desespero e a angústia;

Não é possível dar um grito na fase REM do sonho pois, com a exceção dos músculos dos olhos e respiratórios, os músculos ficam paralisados.

Ajuda a diminuir a dor física. Alguns estudos indicam que enquanto se grita, o cérebro fica com menos espaço para assimilar a dor, fazendo com que a perceção da dor diminua.

Gritar ajuda a espartilhar a dor que vai na Alma. E aqui Gritar não é no sentido de gritar com raiva para as outras pessoas. É gritar para o Universo, é soltar a voz, é deixar que a dor seja vomitada sob a forma de um som. É a antítese do silêncio que grita o som mais perigoso de todos, que é o silêncio do já nada mais vale a pena.

A vida vale um Grito... vale todos os gritos que tiverem que ser lançados no ar.

Gritar.... gritar muito. Depois, com tranquilidade no rosto, seguir em frente rumo à vida!

 

Sara Almeida

 

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24.3.17

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Foto: San-Francisco – Itsa WaB

 

Já era tarde. Ana estava deitada, já fazia algumas horas. Rolava na cama, mas não conseguia dormir. Ana levantou a cabeça e olhou o relógio que herdou da avó, e o barulho do relógio a fazer tic-tac-tic-tac, fazia lembrar que prometera se desfazer do relógio já fazia tempo, mas toda manhã quando se levantava e pegava o relógio, lembrava-se de ouvir o mesmo som na casa da avó, quando despertava. Era sempre domingo e cheirava a bolo de banana. A promessa da madrugada se desfazia e ele ali permanecia.

Estava calor e as folhas das árvores não se movimentavam. Ela sentia-se sufocada, trocou a roupa por uma mais leve, mas nada parecia ajudar. Já faltavam poucas horas para se levantar quando ela, enfim, pegou no sono.

Sonhou que caia num buraco muito profundo, ela gritava com toda sua força para alguém resgatá-la, mas ainda que ela gritasse muito, ela só ouvia o silêncio. Era como se aquele buraco fosse o espaço, onde o som não se propaga. E mesmo que ela gritasse até não ter mais forças, ninguém conseguiria ouvi-la.

 

Ana acordou cansada, foi para o banho a pensar naquele sonho estranho que tivera.

Lembrou o quanto se sentia sufocada por ter um trabalho que detesta, mas fica calada. Lembrou, também, há quanto tempo não tem férias e nem sabe quando terá, mas segue calada. Também lembrou que precisa buscar as crianças e ir ao mercado depois do trabalho. Estava exausta. Vestiu a roupa apressada e seguiu.

Enquanto estava guiando, lembrou novamente do sonho. Ouvia música. Sentiu uma vontade de chorar imensa. Soltou um grito. Há muito barulho na cidade, ninguém pode ouvi-la.

 

Leticia Silva

 

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20.3.17

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Foto: Doll - Alexandra

 

Logo de manhã, cerca das nove horas, ouve-se o primeiro grito. Claro que este é seguido por outros, curtos, intensos como os gritos devem ser. Sentado na secretária capto o estímulo auditivo. Preciso apenas de uma fração de segundo para o integrar e compreender. A única ação da minha parte é partilhar com a minha colega de gabinete: "É o F.". Evidentemente que tal era desnecessário. A minha interlocutora não precisava que lhe dissesse de quem se tratava. Não porque o F. seja o único a gritar no local onde trabalho. É sim apenas mais um que também grita. O grito é-nos familiar pelo volume, timbre e colocação. O F. não fala. Nunca o fez. Também não anda e depende de terceiros e de uma cadeira de rodas. Geralmente o F. tende para a indisposição e isolamento. Comunica de forma muito rudimentar e maioritariamente as expressões comunicativas prendem-se com a satisfação de necessidades básicas. Comunica com o corpo, mobilizando as partes que consegue e expressa-se com o som, ausente de palavras mas com contundência relevante.

 

A M. entra de rompante no meu gabinete. "Ó Rui..." inicia ela antes de ser interrompida por mim com um "Bom dia M.". A interrupção surte o efeito desejado e ela responde de volta "Bom dia Rui", colado ao que a levou ali: "Bom dia Rui, quero o desenho de um palhaço". A rapidez com que entrou, a forma como se mexeu, o modo como falou e a sua imagem corporal revelam imediatamente que a M. não está bem. Dou-lhe o desenho e digo-lhe para ir para a oficina de pintura. A experiência por vezes antecipa de forma rigorosa o futuro e, claro, passado algum tempo ouço os gritos. Vêm da esquerda da minha porta e são os habituais. Alguns sem conteúdo, outros insultuosos. Murros nas portas, vidros e cuspidelas. E mais gritos e insultos. A M. é acompanhada para uma sala para efeitos de vigilância e segurança.

 

O C. passa grande parte do seu dia sentado na cadeira de rodas adaptada. Tem paralisia cerebral e não fala. Abre o sorriso quando me vê e agita os braços descontroladamente. Fá-lo não por querer, apenas porque não consegue controlar a tonicidade muscular. Quando olha para a minha mão ele percebe ao que venho. Tal como lhe prometi trago-lhe uma revista nova de automóveis. Recebe-a nas mãos e quase a rasga, enquanto expressa a sua gratidão com sorrisos e gritos. Muitos.

 

O grito é um instrumento comunicativo poderoso. É universal. Pode comunicar uma situação de urgência, dor, desconforto, necessidade e até alegria. A comunicação Humana, como todos sabemos, é extremamente complexa. Reveste-se das mais variadas formas e intencionalidade. O grito é apenas mais um veículo de comunicação. E este foi apenas mais um dia.

 

Rui Duarte

 

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17.3.17

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Foto: Crayon – Mari Kanezaki

 

Eu gostaria de perceber por que motivo é tão difícil ser-se mediana numa vida mediana. O esforço deveria ser mínimo, o sofrimento residual.

Mas, em vez disso, corro. Corro sempre. Atrás de comboios que não consigo apanhar – porque são mais rápidos do que eu, ou porque eu sou realmente mais lenta.

E, sempre a correr, QUERO AGARRAR TUDO, TODOS! Alguma coisa, alguns... um quase nada.

Tomar consciência de que não consigo alcançar o que me proponho e de que cada vez alcanço menos, apesar do esforço ser cada vez maior é… frustrante (não era bem esta palavra que gostaria de utilizar, mas ficamos assim).

 

E porquê? PORQUÊ?

Decerto é a idade que já me pesa nos ombros (não, a idade não é muita; os ombros é que são fracos). Ou então, um excesso de falta de alguma coisa que não consigo bem identificar. Coragem? Paixão? UMA CERTA DOSE DE REALISMO?!?!

E por vezes, apetece… Era pegar numa borracha, apagar o que está mal. Como quando em miúda desenhava no Paintbrush; ali era sempre possível começar de novo, tentar fazer melhor.

Mas, pensando bem, eu nunca tive muito jeito para desenho.

 

Sandrapep

 

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15.3.17

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Foto: Reading - Unsplash

 

Diariamente, cumpria com minúcia a sua rotina. Acordava, aprumava-se com o seu fato bem passado e asseado, alimentava os peixes do aquário e saía para o trabalho rotineiro no escritório de contabilidade. Durante o dia, raramente levantava os olhos da secretária. Abstraído no seu trabalho, nem reparava nos colegas, aliás estes nunca lhe ouviram uma palavra sequer! À hora marcada saía e regressava a casa para mergulhar nos seus livros, ou então ocupava o tempo a pesquisar e comprar novos livros online. Repetiu todo este ciclo de rotinas anos e anos.

 

Naquele dia, enquanto tomava o seu café na pausa da manhã, percebeu que os colegas falavam dele, que o achavam estranho e desinteressante, alguns sentiam até medo dele, temendo que fosse um gélido psicopata. Mas o maior choque foi o dar-se conta do nome que lhe chamavam: o Senhor Silêncio! Para eles, silêncio era algo oco, insípido, sem vida. Perguntou-se o que é o silêncio? O silêncio é o som inaudível! O seu silêncio era cheio de vida, um turbilhão de ideias, desejos, pensamentos, sons e movimentos agrilhoados dentro de si, querendo explodir!

 

Nessa tarde, saiu mais cedo do trabalho e dirigiu-se ao ponto mais alto da sua ilha, uma bela escarpa sobre o oceano. Nunca tinha visitado aquele local e, por entre as árvores, subiu a escarpa até atingir o seu limite. Contemplou maravilhado toda a extensão daquele mar de um azul intenso que se dissolvia na suavidade do azul do céu. Subitamente, um borbulhar de movimentos dentro do seu peito deflagrou num potente, prolongado e lancinante grito que rasgou os céus. Aves esvoaçaram precipitadamente sobre as árvores, o mar agitou-se desenhando ondas gigantes que se desfizeram na escarpa. Liberto de todo um mundo paralelo, encarcerado dentro de si, desceu a escarpa cantando alegremente em direção à povoação.

 

Tayhta Visinho

 

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13.3.17

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Foto: Water – Martin Winkler

 

O acaso é tramado. Foi ele que nos apresentou. Deu-nos a conhecer um ao outro, sem ele próprio antever no quão profundo isso se tornaria. Mas o acaso também é trapaceiro e malandro: tira em igual medida que dá e, hoje, ao acaso junta-se a distância.

Hoje, o acaso deu-nos a distância de sermos duas ilhas separadas por um oceano que nos parece imenso. Mas nem essa quantidade de mar abalou a primeira cumplicidade que se sentiu, apenas, nos nossos olhos. Sim, as palavras vieram depois. Ah, as palavras! E com as palavras a partilha, o conhecimento do ser, a descoberta do ser que quer ser só contigo. Se o acaso nos apresentou, a distância foi a responsável por nos juntar.

Descobriste-me o mundo, aquele que fui e que vou sendo; descobri-te o mundo que és e vais querendo ser. Sossegámos os gritos ensurdecedores, mas silenciosos, de ser-se quem se é e que habitam nas profundezas de algo obscuro, que guardámos nem sabemos onde. Os segredos mais íntimos, não partilhados, agora revelados e descobertos nas palavras escritas à distância.

E porque sossegaram esses gritos? Porque ousamos partilhá-los um com o outro nesse mundo onde nos libertamos do peso de ser quem somos.

Agora, o grito silencioso que ecoa é o da distância, esse que percorre todo o mar que nos separa e que acaba na onda que banha a areia dessa praia. Por enquanto, resta-nos o eco daquilo que poderia ter sido. Também pode ter-se saudade daquilo que não aconteceu, não pode?

 

Sandra Sousa

 

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10.3.17

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Foto: Martin-Luther-King - Skeeze

 

Grita-se por tudo e por nada e, literalmente, até podemos considerar uma forma de expressão. Pode-se viver a vida gritando como forma de se fazer notar, ou para impor-se autoritariamente. Não é um estilo, mas sim uma doença. É muito aborrecido ser-se invisível! Ir ao futebol e não gritar contra o árbitro é sinal de doença! Ir a uma manifestação e não gritar é quase o mesmo que não estar! Mas pensar nas grandes tragédias humanas no último século sem se revoltar é de uma grande ignorância.

Atualmente o Homem é marcado por acontecimentos para os quais se convoca a nossa atenção e, sobretudo, a nossa atitude. Pensar na guerra da Síria, no terrorismo, na fome, na doença e ficar indiferente é atroz. O homem está a deixar-se conduzir pelos egoísmos, pela xenofobia e pelo racismo, pela ameaça e intimidação, pelos apelos ao medo e à insegurança, pela injustiça. E consentimos aplaudindo. Não nos apercebemos que a seguir vêm os muros, as censuras, as violências, as exclusões, as prisões e, em última análise, as ditaduras.

 

Tornarmo-nos invisíveis perante os acontecimentos é tornar desumano o nosso comportamento e atitude face ao semelhante. Ter de deixar de ser politicamente correto, de deixar de ser condescendente com os abusos e falta de solidariedade, obriga a gritar, a berrar contra tudo o que aflige e incomoda o silêncio dos corações. Obriga a atuar, a existir e a abandonar o conforto e o comodismo do “sofá”.

Deixe-se de fingimentos, abandone a hipocrisia, cure-se dessa cegueira. Mude, mostre-se, discuta, grite, torne-se visível pelas causas nobres que nos afligem, nesta que é a nossa casa comum. Abandone o sofá e pense com Martin Luther King: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons”. E isto dói…

 

Fernando Lima

 

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6.3.17

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Foto: Robin – Nathan Owen-Price

 

Grito. Antes mesmo de compreender, grito:

- Meu primeiro impulso reativo, minha ancestral defesa. Meu instinto original, herdado em sangue. Meu pecado inocente, meu refrigério.

- Meu aviso de guerra, minha fúria dilacerada. Manifesto de horror, garganta ardendo em sedição. Minha raiva acumulada dilacerando decibéis.

- Meu vício de prazer, minha loucura. Meu urro de vitória anunciada. Salva de estridências e de júbilos erguendo-se no céu despreparado.

- Meu canto de cisne, minha alvorada. Cântico longilíneo sobre a terra. Meu espinho bíblico, minha aflição. Meu voo já sem forças de partir – minha cruz primordial.

 

Eu garanto: só tinha a intenção de, em jeito de preâmbulo, reportar-me à definição da palavra “grito”, e, daí, esperar partir para algo que validasse o meu artigo (por sinal já em atraso) do mês de Fevereiro. Mas, como quase sempre me acontece, a palavra decompôs-se-me em frases que me transportam os dedos numa viagem sem hora de regresso – sim, porque as palavras são como as paisagens, atingem-nos, abraçam-nos, marcam-nos... seduzem-nos. As linhas de horizonte são infinitas, atrás de um monte vem outro monte, atrás de uma imagem, vem outra, e outra, e outra...

 

E o meu grito, aquele que, enfim, me calha como breve apeadeiro, nasce magma vivo contorcendo-se no meu papel, cala em si um sinónimo de angústia – reconheço-o, é um grito de Dor. Transporta em si torrentes de sentimento: é rio indomável, nada sobrevive em si, ele sobrevive em tudo, nada lhe serve de margem, ele é a própria margem. E acarta estilhaços de alma na corrente, não como flutuantes pedaços de madeira, mas como bracejos de velas, lutando para não naufragar. A pulso, sobe, cresce para mim, agiganta-se. Raia de púrpura os ocidentes, asfixia horizontes, esgazeia os olhares que encontra, rasga gargantas. E solta-se, enfim, em estridor de foz e expiação.

Sobe ainda, vertiginoso, em decibéis de asas feridas, descobre-se em liberdade, perde-se no vazio... e desce aos infernos, em ecos de grutas petrificadas pela indiferença (os seus muros de lamentações já se habituaram aos voos sinistros de sombras vampíricas).

Cai, por fim, sob o silêncio de um crepúsculo avermelhado. As estrelas que chegam, acusam o estertor ribombante do seu último suspiro e tremem, como as minhas mãos de memórias vivas.

A noite dobra-se sobre si mesma, veste-se de luto – o grito morreu!

 

Mas amanhã... amanhã a aurora vai ser cor de rosa e pássaros novos irão aprender gorjeios de uma sinfonia que reinventarei – as palavras são música, também, se quisermos… e a Vida continua. Sempre. Apesar de todos os gritos.

 

Teresa Teixeira

 

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3.3.17

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Foto: Nail-varnish – Blackyfedora

 

- Mãe, preciso de escrever o artigo.

- Ah, sim? Hoje?

- Sim, Mãe, hoje. Disse-to a semana passada. E alguns dias esta semana.

- E tens até quando para o escrever?

- Mais dois dias.

- Só?! Dois dias?! E estás aqui, a falar comigo?! Meu Deus, oh filha, tens de ir!

- Pois tenho, Mãe… Por isso…

- Mas, olha, porque não o escreveste na sexta?

- Trabalhei todo o dia, depois corri para minha casa e depois mais três transportes para tua casa e, finalmente…

- E no sábado? Já estavas cá, podias ter feito isso no sábado. Assim, num bocadinho…

- Pediste-me para ir à feira e ao Lidl, à farmácia, à senhora dos ovos, ao multibanco, à padaria. E depois ao…

- Ah, pois foi… Mas, ontem, sim, ontem, podias ter tirado um tempinho para isso.

- Podia… Mas quiseste ir apanhar ar, estavas farta de estar em casa, e isso era mais importante, claro que sim. Quiseste ir à missa e à praia, felizmente por esta ordem… E caminhar, caminhar, durante horas.

(Já me sinto a delirar: Nossa Senhora do Esferovite me auxilie, S. José do Poliester, São Tótil Ignácio, todos comigo, de mãos dadas e coração pleno, neste momento de agonia.)

 

- Mãe, tem mesmo de ser hoje. Só preciso de umas horas sem interrupções para poder escrever.

(Mãe, estou a “panicar” e o prazo a terminar. Não vês o alerta, em néon, sobre a minha cabeça?!)

 

- Oh, filha, claro que sim, vai lá escrever. Vou ligar à tua tia, ainda não falei com ela desde que tive alta, e à Antónia, ao enfermeiro Amílcar, à Rosa e à Irmã Benedita. E não ligo a mais ninguém, mais ninguém! Não me apetece falar com ninguém, estou tão cansada... Mas queria mais qualquer coisa, espera… O quê, meu Deus? Ai, esta minha memória, filha.

(Eu de pé, “vai-não-vai”, na antecâmara da crise cardíaca, aproveito a pausa para respirar.)

 

- Boa, Mãe... Vai lá então fazer as tuas chamadas. Eu preciso mesmo de escrever.

- Claro, filha, vai, não percas mais tempo. Depois atrasas tudo e deitas-te tardíssimo, não pode ser.

- Eu adorava dormir mais tempo, acredita, e poder deitar-me mais cedo. Adorava escrever de dia, debaixo do sol e sem me babar sobre o computador, mas ainda não dá, não é, Mãe? Compreendo que precisas de ajuda e é um prazer fazer o cardápio do dia, tratar de nós, da tua casa e da minha, das compras, do teu felpudo canídeo, dos banhos, das tuas múltiplas solicitações e, claro, não te angustiar com as minhas tarefas, como este artigo que preciso mesmo de escrever. Por isso, Mãe, resta-me uma ínfima parte da noite, até a saliva mergulhar no teclado.

- Pois é, filha. Mas tens de te deitar mais cedo. De noite é que se dorme! O teu corpo a pedir-te descanso e tu a forçá-lo a um esforço tão grande. E se já estás a dormir, já não te rende o tempo. Mais vale ires para a cama.

- E quando escrevo?

- De dia! Organizas-te e consegues!

(Respirações profundas, língua mordida com afinco.)

 

- Ok, Mãe. Vou estar na cozinha. Tens o tabuleiro na sala, o chá está a escaldar, como tu gostas. Fiz-to agora porque o querias agora mesmo. Por favor, senta-te, descansa e toma o teu chá, tranquila.

- Ah, que bom, filha! Obrigada. É mesmo isso que me apetece, vou então. Bom trabalho, concentra-te que é para fazeres isso depressinha.

(Caminho em silêncio para a cozinha. Não quero fazer nada, rigorosamente nada, que lhe lembre que parti. Sento-me em frente do computador, olho para o documento Word. Fecho os olhos. Suplico: Inspiração, desce sobre mim!)

 

- Filha... Estás aí?

(Oooommm... inspirações profundas, expirações suadas.)

 

- Sim, Mãe...

- Desculpa, filha. É só uma coisinha. Se vires que ainda não interrompo nada importante, é claro. É só um minuto.

(Importante? Como é possível que me ocorra algo, seja lá o que for, quanto mais importante, numa fração de segundo de silêncio? Como?)

 

- Diz, Mãe...

- Podes vir cá, por favor? Não quero gritar para não perturbar a tua concentração.

(Arrasto os pés até à sala e componho o ar traumatizado. Apresento-me ao Xá da Pérsia, sem desvelo. Aguardo a ordem.)

 

- Oh, filha, desculpa. Podes por favor abrir mais a janela, chegar o cortinado para trás e ver se deixei o comando da TV na cozinha?

- Não está na cozinha.

- Ah, não? Hmmm… Estranho… Não fui a mais lado nenhum. Oh filha, por favor, procura-o. Sem ele, o que é que eu faço? Precisava de arranjar estas unhas, estão horríveis. Um verniz bonito, isso é que era, tenho aqui uns novos, já tos mostrei? Mas, pelo sim pelo não, comprei o meu preferido. De vez em quando, apetece-me experimentar uma cor nova, mas raramente gosto de a ver em mim, tu sabes… Experimenta tu, um dos novos. Mas, pronto, agora não que tens de trabalhar, eu entendo. Agora, agora queria o comando. Estou para aqui a pensar que não fui a lado nenhum, onde pode estar o comando?

(Rally paper, percurso: todos os sítios onde a minha mãe não esteve. Um tempo infinito depois, encontro o comando no quarto de banho.)

 

- Não pode ser!

- Sim, Mãe, estava no lavatório, atrás da escova do cabelo.

- Mas não fui a mais lado nenhum! Só à cozinha!

- Foste ao quarto de banho. Está tudo bem, Mãe.

- Ai, filha, tudo bem, nada! Parece que alguém o foi lá pôr. Ai, Deus me acuda e me livre do mafarrico; credo!

(Alguém me acuda a mim. Alguém me segure. Alguém me amordace, depressa…)

 

- Mãe, agora vou mesmo, está bem? Daqui a pouco é hora do jantar.

- Ah, sim, pois, vai, vai, filha. Não te percas na conversa. Não vou chatear- te mais, ok? Vai lá que é para acabares isso e jantarmos. E para irmos para a cama cedinho, está bem?

(Vigésima nona interrupção, duas linhas de texto depois.)

 

- Filhinhaaa… oh… desculpa… ainda demoras? Era mesmo só uma coisinha muito rápida.

(Vou chorar tanto… tanto…)

 

- Diz, Mãe.

- Olha, filhota, não te queria aborrecer mas o chá está gelado, sabes que gosto dele bem quente. Se calhar esqueceste-te, não faz mal, mas para a próxima… Está bem, filha?

- Mãe, não me esqueci. Estava quente, duas horas atrás.

- Ah… E disseste-me?

(Inspira fundo, expira flores…)

 

- Dá cá o chá. Vou aquecê-lo, outra vez.

- Obrigada, filha. E o cortinado, podes fechá-lo um pouco? E a janela? Está a ficar frio. E já escreveste alguma coisa?

- Quase nada.

(Pânico total neste momento.)

 

- Oh filha, tens de te disciplinar, sabes? Distrais-te muito facilmente, assim não dá. Tens de ter aquela organização de trabalho que não se desvia do objetivo. E concentrares-te, é isso. Senão, não há milagres.

(A sério, Mãe? Ai que se me grita a alma cá dentro. Dás comigo em louca.)

 

- Não dizes nada, filha? Pareces um pouco cansada. Ou chateada… não percebo bem.

(O meu telemóvel toca, noutra divisão da casa.)

 

- Filha, não atendas!

- Não pretendia atender. Preciso de trabalhar.

- Tens de dizer às pessoas que não podes estar ao telefone. Não podem estar a interromper-te senão então é que não fazes mesmo nada. Diz-lhes que tens de trabalhar!

(Sinto o nó na garganta e o punho no estômago.)

 

- Não são os que telefonam que me impedem de nada, Mãe, vês? Basta não atender. São aqueles que me olham nos olhos mas não me veem nem me escutam.

- Filha, eu entendo-te. Isto é um mundo cão, de gente sem empatia nem lealdade. E tu és uma mulher de causas, como eu, bem sei. Mas as pessoas têm de saber que não estás sempre disponível. Tens de aprender a dizer não, filha. As pessoas são muito egoístas e não percebem estas coisas sozinhas; são cegas, ce-gas! Ouve a tua mãe que te quer bem. Vai poupar-te muitos dissabores! E os bons, esses, vão entender perfeitamente, acredita!

(Estou prestes a desancá-la, azeda e viperina, sem filtros nas palavras. Como se isso não bastasse, a criatividade, hoje, não quer nada comigo. Ah, desespero… Desisto…)

 

- Mãe, vamos ao verniz: a tua cor habitual?

 

Alexandra Vaz

 

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