Foto: Smoke - SidLitke
Quando chegaram à aldeia eram já várias as dezenas de minutos sem uma palavra, o longo luto da estrada assim o impôs. Pararam o carro bem no centro daquilo que foi uma praça – a praça da aldeia. Helena desligou o motor. Em redor, a cor dominante, ou melhor, a única cor era o preto, no chão, nas paredes e nos telhados das casas, ou em verdade, do que delas restava, nas ruas, no pedaço de jardim agora imaginário, nas árvores. Tudo queimado, ressequido, sem vida, sem alma. Os corações batiam apenas porque sim, contrariando tudo o que os olhos viam; batiam com dor. Não havia homens sentados nos bancos de jardim, não havia mulheres sentadas nas soleiras das portas, não havia mulheres e homens em passo apressado, ou pachorrento, não havia crianças, não havia animais. Havia cinzas, muitas cinzas, havia montes de chapas e de ferros retorcidos; talvez tivessem sido carros, ou motas, ou máquinas agrícolas, ou uma cabina telefónica, ou as mesas e as cadeiras de uma explanada, ou bancos de jardim, ou animais. Agora apenas podiam ser tudo aquilo que a imaginação quisesse.
Ricardo abriu a porta e saiu do carro. Helena seguiu-o. Ricardo deu três passos sentindo estalar sob os seus pés aquilo que foram brasas e que cobriam todo o chão que a vista alcançava. Parou, não querendo causar dano a um corpo assim ferido, tão violado.
Imóveis, olharam lentamente em redor, incessantemente na esperança que aquele preto mudasse, que uma qualquer cor invadisse a paisagem e inundasse os seus olhos, dos quais caiam longas lágrimas, sem um ruído, sem um suspiro, sem um ai.
Helena pôs o braço à volta do tronco de Ricardo, ele pousou o braço sobre os ombros dela. Apesar dos dias, dos rescaldos e dos ventos, aquele cheiro queimava as memórias da vida de há poucos dias atrás.
E então sentiram penetrar-lhes os ouvidos, o silêncio absoluto das árvores que não dançavam ao vento, das crianças que não brincavam na praça, dos velhos que não jogavam as cartas, das mulheres que não riam, dos homens que não trabalhavam, dos pássaros que não cantavam, das galinhas que não cacarejavam, dos cães que não ladravam, dos gatos que não miavam, de tudo o que fora vida e estava morto, sem ajuda, sem carinho, sem aconchego, sem humanidade, sem solidariedade, todos irmanados na trágica e lancinante dor de ser consumido pelas chamas. Sim, o que agora dominava aquela praça, aquela aldeia, era o preto e aquele silêncio que, de tão absoluto e brutal, ensurdecia.
Fernando Couto