31.5.19

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Foto: Child - Edgar Marques

 

Era aquela criança que me aproximava daqueles que andavam sempre sozinhos. Que via no olhar deles a infelicidade e a solidão. Que repreendia quem os maltratava, mesmo sem ser violência física. Por vezes, as palavras são mais severas e têm um impacto maior.

Fui crescendo e vi que, infelizmente, essas pessoas existem num número maior do que aquele que desejava ver. Mas não conseguia amparar nem falar com todos os que se sentiam sós. Apenas alguns.

Apercebi-me também que, a determinada altura, até eu estava emaranhada na teia de alguém que se dizia ser, que dizia acontecer, que podíamos ir e alcançar. Fui, feliz, de mão dada com o vento. Até a chuva cair, até o próprio chão desaparecer. Até deixar que me pisassem e pensar. Por vezes somos tão ingénuos, tão honestos, demais ao que parece. Que quando damos conta, estamos rodeados do mal, rodeados de invejas.

 

Quando pensamos que um sorriso é verdadeiro, temos de observar mais do que um mero sorriso. Ir mais além, para o nosso próprio bem. E daqueles que nos rodeiam. Até onde vai a maldade das pessoas? Até onde conseguem ir? Aqueles valores que nos ensinam, que nos tentam incutir para sermos melhores seres humanos. Para ajudarmos o próximo. E nós? Que confiamos em palavras bonitas, sorrisos falsos ao que parece. Quando damos de nós e se aproveitam amargamente da nossa bondade e fragilidade. Estaremos seguros neste mundo desonesto? O que acontecerá a todas as pessoas que são como nós? Que traz de bom a essas pessoas pisar os outros?  A glória de fazer mal? Isso deixa-os felizes? Se sim... estamos perdidos. Ser ou não ser?

 

Inês Ramos

 

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27.5.19

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Foto: Jewelery - Nuno Lopes

 

Conhecido simplesmente por Sr. Nunes, assim era tratado de forma carinhosa por quem recorria aos seus serviços de artesão da indústria de prata. Foi um exímio artista na conceção, fabrico e reparação de joias e de artigos de prata. Exercia essa profissão, que por natureza é de cunho artesanal, na própria casa onde vivia, em prédio muito antigo, do século XV, sobranceiro ao Rio Douro, em privilegiada zona histórica da cidade do Porto, na freguesia da Sé.

Na sua modesta casa, sentia-se e vivia-se um ambiente de bem-estar que transmitia serenidade, um viver saudável a que não eram estranhos os nobres princípios pelos quais orientava e pautava a sua forma de estar na vida, quais sejam: o rigor, a modéstia, o recato e a probidade. Sempre coerente a agir na prática dos seus atos e no seu modo de pensar, qualidade rara de que era dotado, muita estima e confiança granjeou daqueles para quem trabalhou e com quem conviveu.

Dedicou-se intensamente a essa nobre profissão, que abraçou desde muito novo, praticamente desde a infância, seguindo assim uma velha tradição de família, honrando e fazendo jus aos pergaminhos dos seus antepassados, também eles exímios e consagrados artífices que foram na indústria de ourivesaria de prata. Era com esmero e rara habilidade que dava largas à execução dos seus trabalhos, aprimorando quaisquer produtos de ourivesaria, quer na criação ou na reparação de artigos de prata.

Foi sempre fiel a si próprio e aos princípios pelos quais se norteava, nunca deles abdicando, tendo percorrido na sua vida um longo caminho de trabalho, em que estiveram sempre presentes, no seu dia a dia, a verdade, a compostura, o decoro e a ética. Para ele, o mais importante era ser cumpridor dos seus deveres, ser íntegro, coisa rara nos tempos que correm, mas que tal não fosse por pressão social, económica ou por temor de represálias, porque nele residia essa nobre virtude e dela tinha consciência de que assim deveria ser para o seu bem e, sobretudo, para todos aqueles com quem convivia.

Por isso nunca enriqueceu, e muito menos foi um homem abastado, o que, aliás, a tal não aspirava, mas possuía uma outra e de maior riqueza, embora invisível, a da sã e autêntica honestidade, cuja dimensão fez dele um homem integro na “arte” de viver e na sua atividade profissional, virtude que o tornou inesquecível para quem com ele conviveu e conheceu de perto.

 

José Azevedo

 

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24.5.19

Statue - Jasmin Sessler.jpg

Foto: Statue - Jasmin Sessler

 

Tenham cuidado com os agressivos, mas fujam dos desonestos.

Andar na vida com nuvens que criei em cima da cabeça, porque perdi o coração, que me podem pesar ao ponto de não se conseguir empurrar o caminho para a frente, não quero, não posso, não consigo!

Também é verdade que estas nuvens só existem se há consciencialização da sua origem e das suas consequências. E quando elas existem e a indiferença é tão grande, que só eu interesso? Perigoso!

Tenho traços na memória que a família me trouxe, que não renegam a verdade, renegam a mentira, renegam a fraude e, de tal forma estão presentes, que não consigo, nem quero, nem posso apagá-los.

Não percam o coração ou não o deixem fugir. Ver o outro, mesmo o desconhecido, como um ser bem-vindo, é acreditar que é verdadeiro. Infelizmente, pela convivência, percebemos que muitos já perderam o coração e, então, vale tudo! Desilusão!

Tenham cuidado com os agressivos, mas fujam dos desonestos. Estes magoam mesmo, pois destroem a fantasia que alguns ainda têm sobre o ser humano.

O caminho que percorremos tem de ser claro, honesto e justo. Será que algum dia sonhei com isto, ou será mesmo um sonho percorrer um caminho assim?

Fujam dos desonestos!

 

Ermelinda Macedo

 

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20.5.19

Rainbow - Gerd Altmann.jpg

Foto: Rainbow - Gerd Altmann

 

Tudo se passa entre a verdade e a mentira.

A medida factual dos acontecimentos é frequentemente distorcida segundo a vontade dos intervenientes, por isso há que preservar a honestidade que enaltece e enobrece o caráter dos indivíduos. Esse valor raro que se encontra em perigo de extinção no seio desta sociedade sedenta e competitiva.

Proteger e valorizar a integridade, a veracidade e a franqueza.

Ser-se como é.

Ser-se o melhor que se pode ser.

Dar o melhor de si aos demais e fomentar o melhor dos demais. E nesta positividade iniciada pela honestidade, o mundo se tornará um pouco mais risonho, pouco a pouco, com o contributo coletivo de cada um de nós.

 

Sara Silva

 

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17.5.19

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Foto: Girl - FotoRieth

 

Por várias vezes, nos mais variados contextos, acusaram-me de excesso de zelo. Só não percebo porque o fizeram em jeito de acusação se, para mim, é visto como um elogio. Elogio, sim, pois o excesso de zelo pode ser confundido com a honestidade no seu extremo e a honestidade é uma qualidade. Ou não será?

Talvez seja uma pessoa de extremos e estes são mal vistos por muitos que não aguentam a pressão da responsabilidade de assumir todos os seus atos, de dar a cara por causas em que verdadeiramente acreditam, de ficar na sombra quando é isso que é preciso, mesmo tendo o papel principal em todo o processo e desenrolar da história.

Há quem precise de ficar com os louros, mesmo tendo feito tudo não por mera honestidade e zelo, mas porque tem como objetivo final o seu proveito próprio, nem que seja alimentar o ego e pensar que vai para a cova de consciência tranquila.

 

A honestidade pode ser confundida também com inocência, por se deixar enganar por outros que se aproveitam do zelo e empenho de uns e daí tirem o seu proveito. Sim, também pode acontecer. Neste caso, opto por manter a honestidade, não à pessoa em si, mas à causa, ao propósito final do que nos é pedido e sugerido fazer e que vemos ser realmente útil e com sentido.

“Mas, eles estão a aproveitar-se de ti!”

E daí? Serão eles a aproveitar-se de mim ou serei eu a otimizar ferramentas para continuar o caminho que escolhi? Deixai-os pensar dessa forma.

Os limites são desenhados por cada um, cada indivíduo escolhe até onde consegue ir.

No final a conversa é entre mim e aquilo em que acredito.

 

Sónia Abrantes

 

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13.5.19

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Foto: Witch - ID 942987

 

Dizem que era uma vez uma mulher chamada Sogra, muito, muito má. Mal-encarada, metediça, feia como uma verruga de bruxa, escanzelada como uma erva ruim arrepiada pelo vento. Entendam:  ela não nasceu Sogra. Se calhar, nem nasceu má, nem feia, nem verruga, nem joio – pelo contrário, há quem diga que ela era até uma joia, antes de lhe porem o nome Sogra. Mas, claro, isso do disse-que-disse é poça de água turva, onde não se pode, nem se deve, lavar os ouvidos…

Bem… seja como for, diz que essa tal megera, uma certa tarde peganhenta, depois de uma jornada de trabalhos duros pelas leiras da vida, se sentiu sem forças, morta de sede e de cansaço, desesperando por um fio de água que lhe aliviasse a secura da boca e da alma.  Mas nem rio nem arroio lhe valiam, tudo à sua volta era secura e silêncio: nem cantar de fonte próxima, nem coaxar de rã longínqua. Quando a tarde começava a definhar, finalmente, escondida por uma mancha verde escura, ela descobriu o que lhe pareceu ser a estrutura altiva de uma nora – primeiro viu um alcatruz, depois outro, depois percebeu, pela disposição dos recipientes, a curva de uma enorme tarambola. Parada. Mas era uma nora – que alegria a dela! Cheia de um novo ânimo, a criatura correu para ela, de braços abertos, como se quisesse abraçar o esqueleto enferrujado do mecanismo, que, para ambas, seria a esperança da água, da vida. E, oh, sim, havia água, no fundo do poço! Havia luz, a luz rósea da tarde, refletida naquelas águas, paradas, pensava ela, apenas porque ninguém, há muito tempo, as abençoava com o beijo da sede!

Mas aquela nora, de vulto sombreado pelo decair do dia, e de toque áspero, pela ferrugem dos anos e pela oxidação da sua própria herança férrea, negou-se a mover, à pouca força dos seus braços – antes a repeliu, quase empurrando o seu corpo magro para o poço alvoroçado por algumas pedras que rolaram, como lágrimas, a seus pés.  Aquela nora, ofuscada pelo seu poder inesperado, ciosa dos seus domínios de egoísmo, avara da água de que se julgava guardiã e senhora absoluta, zombou da sua fra(n)queza e, como uma burra teimosa, fincou os dentes da roda, arvorou-se em coisa superior, e condenou a Sogra ao amargor da sede - condenando-se, a ela própria, ao chiar pulverulento dos emperrados por soberba.

Dizem que a Sogra ainda anda por esses campos, juntando as forças que precisa para encontrar, quem sabe, águas tranquilas. Um ribeirinho, que seja. Uma chuvinha mansa, que baste para lavar a alma.

 

(Lendas são lendas:  em contracena com uma nora, ferrugenta ou não, o povo põe sempre uma sogra, malvada ou nem tanto, vá-se lá saber porquê. Nomes são apenas nomes - a Força, dão-lhes as pessoas que os usam, em sede ou em ignorância.)

 

Teresa Teixeira

 

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10.5.19

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Foto: Beauty - Chí Nguyen Quoc

 

Ultimamente, tenho visto, com interesse, uma série que no seu fundamental foca a experiência da moralidade humana. Evidentemente que, para ter audiência, veste-se o tema com humor, satirizando a triste realidade da finitude da nossa estadia por estes lados e a expetativa de se ter (ou não) uma recompensa “pelos bons serviços prestados”. Em resumo: ser “bom” ou ser “mau” durante a vida determinará uma recompensa ou um castigo eterno. Soa familiar, certo?

Ora, cheio de lugares comuns, como podem imaginar, está o argumento. Conceitos como o livre arbítrio, as escolhas pessoais, os modelos seguidos e, claro, a força de vontade. Força de vontade para, depois de vividos e instruídos, agirmos em consonância com a nossa consciência e com as leis / regras / ética / costumes / moralidade do contexto em que vivemos.

Em princípio, aqui residiria a fórmula para a etiquetagem da “boa pessoa”. Claro que isto assim posto, de forma tão redutora, sem os constrangimentos e exigências de um texto que “altere o mundo”, leva à conclusão da seguinte causa-efeito: “se queres ser um tipo às direitas (e até merecedor de um paraíso, se essa for a tua convicção), basta teres força de vontade”.

 

É claro que isto não chega. É claro que não é suficiente. Porventura, se não contássemos com a instabilidade inerente ao ser humano, em que “um dia é uma coisa e noutro dia é outra”, poderíamos ter esperança num movimento em contínuo, no sentido da elevação do ser e (porque não?) do espírito. Mas não somos assim e todos o sabemos. É também certo (e ainda bem), que “uma má atitude, não faz de mim má pessoa”, abrindo-se assim um buraco negro descomunal que nos conforta a consciência de cada vez que nos atraiçoamos.

Porque sim, desengane-se quem pense que o maior prejudicado nessas situações será um qualquer terceiro, vítima da nossa ação. Se o pensamento sobre o facto se evadir, se as noites forem bem dormidas, se o humor for o melhor, assim como o apetite, podes ter a certeza que o teu “grilo falante” não está a fazer bem o seu trabalho. Mas lá está, se calhar a culpa é dele e nunca tua. Força para se encontrar bodes expiatórios, é coisa que nunca falta.

 

Rui Duarte

 

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6.5.19

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Foto: Love - Janko Ferlic

 

Senta-te aqui, em silêncio, e espera que o tempo passe. Não mexas um dedo e a dor irá embora. Ali, ao virar da esquina, está tudo aquilo de que precisas, mas agora só por um momento, para. Detém-te aqui, observa a cadência do teu coração. Permite-te este espaço, este tempo, sem explicações que nem tu podes entender. Dizem os vizinhos que “tens de ser forte”, “tens de “esquecer”, que “já está na altura”. Nem sabem que, quando to dizem, te tiram o direito de ser humana. Precisas muito de atracar, dentro de ti, de resgatar o que resta, de respirar fundo sem cair. Precisas de carpir, de gritar, de envolver nas tuas lágrimas toda a dor que te consome para que saia de ti. Fica aqui. Não dês nem mais um passo que te aproxime do abismo dos outros. Precisas de tempo, mesmo que não to lembrem. Todo o tempo de que precisares.

 

Ontem vi-te à janela. Olhavas o horizonte e sorrias sozinha. Achei tão bela aquela imagem, apesar da tristeza velada no cantinho do teu olho, que contrastava com a luz do teu sorriso. Tive vontade de tocar à tua porta, de te convidar para um café e um passeio no parque. Se calhar, fazia-te bem. Sei que ninguém te visita há muito tempo, que ninguém te vê na rua desde o funeral dos teus filhos. Diziam-te que tinhas de ultrapassar, sem saberem que jamais se ultrapassa uma coisa destas, ainda que um dia possas seguir em frente. Não consigo imaginar a tua dor, nunca perdi um filho e a simples menção do mesmo faz-me tremer inteira. Não sei como se vive isto, como se continua a respirar depois de uma perda tão profunda. O que te digo, então, que te possa aliviar? Nada, nada te pode aliviar e é por isso que fugimos todos de ti. Não sabemos o que dizer, o que fazer - logo a ti, que sempre soubeste as palavras certas, a dose certa de cada abraço, todas as vezes que a vida nos tolheu os dias. Desculpa...

 

No Outono passado, cruzamo-nos na escada. Saías com os miúdos, felizes e barulhentos, cheia de sacos e coisas coloridas. Sorri e disse-vos olá, troquei algumas palavras com os pequenos e segui, certa da vida que me corre nas veias, sem supor que seria a última vez que vos veria. Nesse dia sorriste, visivelmente cansada, mas feliz disseste que a tua mãe fazia anos e que lhe tinham preparado uma festa surpresa. Os miúdos, com 4, 6 e 8 anos saltavam, excitadíssimos, certos de que a avó iria adorar os seus presentes. Lembro-me de ter pensado que os teus filhotes eram meninos muito doces, felizes e que tinhas muita sorte em ter uma prole assim. Não, não imaginava que o Sr. Alberto, o motorista do colégio que os ia buscar a casa diariamente, sofresse um AVC fulminante e morresse ao volante do autocarro escolar, com os teus filhos lá dentro. Ninguém sobreviveu a este acidente, nem os pais que estavam em casa. E a vida mudou, inteira.

 

Mais de um ano se passou e tu quase nunca sais de casa. Nas primeiras semanas, as noites eram interrompidas pelo som do teu choro, convulsivo e cheio de angústia. Agora já não choras, mas também não vives. Abres as janelas e, por vezes, assombras à janela, mas não existe vida em ti. Faze-lo mecanicamente, sem pensares o que te leva a fazer aquilo, todas as manhãs. Pergunto o que será necessário para que redescubras um sentido na vida, para que possas caminhar mesmo sem os teus filhos. Há muitos meses que dou por mim em frente à tua porta, ao regressar do trabalho, num misto de dor e de absoluta tristeza. Pergunto-me se sabes que fico ali, todos os dias, em silêncio, incapaz de perceber o que vai no teu coração, do outro lado da porta. Não sei como chegar a ti sem te assustar, como te ajudar sem ferir, como te olhar nos olhos sem que me apeteça chorar. Não sei. Mas todos os dias entro em casa e abraço os meus filhos, contigo na alma, triste pela dor que te consome e da qual não te consegues livrar.

 

Hoje de manhã decidi que ia tocar à tua campainha, ainda que a angústia me dissesse para não o fazer. Saí de casa, levei umas fatias do bolo que tinha feito ontem, enchi-me de coragem e rumei à tua casa. Quando saí do elevador ouvi o riso de uma criança, a tua voz e parei no corredor. À tua porta, estavas tu e a filha dos vizinhos da frente, com 3 anos, que te agarrava a mão enquanto te olhava nos olhos. Pela primeira vez, em muito tempo, presenciei a tua gargalhada. Não fui capaz de me dirigir a ti, permaneci tão quieta quanto possível, naquele canto, a admirar-te cada vez mais, pela capacidade de estares, simplesmente, ali. De estares viva. Quando puseste o joelho no chão, a menina beijou-te na face e convidou-te para o seu aniversário. Penso que te apanhou desprevenida pois não foste capaz de recusar aquele convite. Os pais, agradecidos, confidenciaram que a pequena acordava há vários dias a falar em ti e que não descansou enquanto não foi convidar-te pessoalmente. Depois de se despedirem ficaste ali, de pé, com o olhar perdido no vazio, mas serena e sorridente. Como se algo tivesse mudado, como se por um momento tivesses respirado mais fundo e o mundo não fosse só dor.

 

Apesar dos sinais de esperança, dos pequenos momentos que podem construir um futuro pelo qual valha a pena lutar, sei que não vais ultrapassar nem esquecer e que há memórias que vão doer sempre. Talvez já o saibas também e, por isso mesmo, aceites seguir em frente, sabendo que tudo isto caminhará contigo, até ao último dos teus dias. Podes construir novas memórias, conhecer pessoas extraordinárias, ter até outros filhos, mas serás, para sempre, a mãe do João, do Pedro e da Clarinha. Na dor que te procurará, em ondas violentas e inesperadas, nos dias ainda por vir, eles serão eternamente o teu oceano de amor. Dizem que és forte porque não choras, porque não gritas, porque ninguém te vê sangrar por dentro. Eu acho que és forte porque te permites sentir tudo isto, visceralmente: a dor e o amor. Regressei a casa com o bolo, as palavras e os pensamentos; amanhã talvez tos leve. Hoje, estou certa, o dia acordou contigo no pensamento.

 

Alexandra Vaz

 

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3.5.19

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Foto: Pretty - Deedee86

 

Não sei, não sabe ninguém que força nos anima em determinadas circunstâncias. A verdade é que move e impulsiona os nossos instintos, obriga-nos a cumprir deveres e a gozar direitos e alegrias. Com ela defendemo-nos e sobrevivemos. Sentimo-la ao de leve ou a encorpar-se quando a reação assim o exige. É um processo interno, individual, que nos remexe e incomoda até lhe franquearmos saídas para se libertar. É incontrolável. A vida vai-se desenrolando larga, promissora, mas também profusa em obstáculos. E nós, porque a vida tem muita força, com essa força os vamos arredando e ultrapassando.

Acordamos e a única coisa que nos apetece é ficar deitados sem ver, ouvir ou falar. Esquecer que o mundo fervilha e nós temos que acompanhar esse movimento. Fixamo-nos no vazio, não queremos fazer nada e não sentimos vontade de contrariar esta apatia, esperamos que algo aconteça e nos anime. De repente, como que movidos por uma mola, saltamos da cama, esquecemos as razões da inércia que nos tomou ao acordar.

Que força nos anima, afinal? O amor, claro – evidenciam uns. A vontade de mudar e vencer – dizem os ambiciosos. O sentido de justiça e consciência social – afirmam os politizados. A maldade e a bondade – adiantam os moralistas. A esperança. Dizem que enquanto há vida há esperança, ou o ditame é bem, enquanto há esperança há vida? O que quer que seja, de uma maneira ou de outra, a esperança, o gosto pela vida ou a obrigação de viver impulsionam a força que há em nós. Ou será a força que impulsiona tudo isto?

 

Essa força denuncia-se nos atos que praticamos ou aos quais somos expostos. Não é possível quantificá-la nem mensurá-la à luz das unidades de medida conhecidas, mas é possível avaliar a grandiosidade em função das circunstâncias. Saberá alguém de quantos quilos ou metros precisa um condenado para se arrastar e subir (sabendo que não vai descer) os degraus que terminam no patíbulo? Que intrigante é essa força que vem, sabe-se lá de onde, que o mantém de joelhos, sentado ou em pé na espera do contacto frio com a lâmina ou da bala incandescente que lhe há de ceifar a vida! Não tem outra saída, dir-me-ão. E eu percebo, mas não ter outra saída não invalida a força presente na espera do momento final, o organismo simplesmente poderia desistir e abandonar-se à atonia. Mas não, reage até ao fim.

Conta-se que a rainha Antonieta no momento em que subiu ao cadafalso para ser decapitada terá pisado, inadvertidamente, o pé do seu carrasco. Com sincero pedido de desculpa ainda explicou que não o fez de propósito. Reação semelhante terá tido a Marquesa de Távora quando, ao porem-lhe o capuz e se soltou uma madeixa do cabelo, ela pediu para não a descomporem ao mesmo tempo que tapava um calcanhar que o vestido teria deixado a descoberto quando se sentou à espera que a decapitassem.

O que quer que sejamos ou nos aconteça, temos em nós uma inesgotável força energética que nos muscula a alma e não nos deixa cair vencidos.

 

Cidália Carvalho

 

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