7.1.11

 

Lembro-me de que, neste período, os reclusos ficavam mais agitadas com a tal esperança de, nesse ano, poderem ir a casa passar o Natal com a família. Alguns confirmavam que lhes tinha sido concedida uma precária prolongada, regozijando de cinco preciosos dias fora dali! Outros sabiam que este, fora já aproveitado na festa de Natal da prisão, que tinha sabor a liberdade, pelo menos, quebra na rotina diária. Outros, enganavam-se, ainda na esperança de poderem ir a casa.
 
Lembro-me de sair todos os dias da prisão, enquanto eles recolhiam às celas. Afinal, para mim era apenas uma passagem de aprendizagem profissional. Para eles uma estadia. De aprendizagens também. Umas, menos boas; outras, melhores. Recordo-me da primeira vez que lá entrei.
Lembro-me sobretudo dos reclusos. Mais de uns do que de outros. Grupos de homens enfiados num espaço físico, com regras próprias, protocolos, burocracias, submundos. Homens com face diurna e face nocturna. Lembro-me de histórias de vida de homens banais, com percursos desviados, de erros cometidos. Homens com famílias, de família. Homens. Pessoas como eu, com sonhos, medos, alegrias, tristezas. Humanos.
Aprendi a face humana da prisão. Nem todos eram tão humanos assim. Também nem todos eram capazes de lidar facilmente com a prisão. Nem todos têm a mesma capacidade de se adaptar. Talvez, por isso, nem para todos a prisão seja um hotel, como por aí se diz. Para uns talvez seja o melhor que lhes aconteceu. Sim, para uns, sair em liberdade pode ser um terror. Mas, para outros, permanecer na prisão torna-se o horror. Em todos os sentidos. Físico, sexual, mental e psicológico. Percebi, sem perceber, que é como um jogo. Cuidado em quem confias, cuidado em que te metes, cuidado com quem te alias. Se tiveres sorte em cair em boa graça, talvez tudo seja mais fácil.
Fácil não será, ter saudades de casa. Ser visitado e ver a visita partir e regressar à vida normal cá de fora, enquanto lá dentro tudo, ou quase tudo te é negado. No mínimo, as vontades. Vontade de ir passar o Natal a casa, mas saber que às 18h a cela tem como destino uma longa noite. Nem sempre tranquila. Tudo isto, enquanto cá fora ainda nem a ceia de Natal começou.
 
No meu último dia de estágio tive saudades. Olhei em redor as grades com nostalgia. Os “meus” reclusos olharam-me incrédulos. “Saudades, doutora? Quem me dera ir embora”.
Pois, também eu queria ir, se estivesse na situação deles, mas não estava. Estava dentro da prisão do lado de fora da reclusão. E esses olhos jamais imaginam o que é ser recluso, ninguém imagina, mas todos falam.
Recordo-me, em particular, deste grupo (que espero já estejam em liberdade a encaminhar a vida!) com quem trabalhei. Os “meus” reclusos. Das sessões, das opiniões, das histórias, dos conflitos, da confiança estabelecida. Olho-os e olhava-os pelo nome, e não pelo número de recluso. Eram exemplos da reclusão ao vivo. Nunca os olhei pelo crime, mas sim pelas pessoas que eram. Afinal, não tão diferentes de mim no geral. Numa condição diferente, em absoluto. Via no entanto, na maioria, uma vontade de não regressar. De querer que isso não acontecesse, de pensar em meios para que a prisão não fosse, de novo, morada. Perdi-lhes o rasto. Acredito porém que, na sua maioria, a prisão já não seja uma realidade. Assim o espero. É que a prisão tem como máxima a reintegração do recluso, através da privação da liberdade. Mas, confessamos que peca por defeito. É que entrar, permanecer e sair de novo, pode ter muitos efeitos num indivíduo, mas por si só não implica reabilitação. Muitas vezes, implica o contrário.
 
É verdade que, pelo menos na sua maioria, todos merecem lá estar e serem responsabilizados pelos seus crimes. Mas, apesar de alguns reclusos ainda serem livres de espírito (alguns!), continuam amarrados. Muitos, serão sempre. Já o eram antes de pisarem aquele chão. Mas, não é fácil de todo. E se para mim um ano é muito, imaginar dez, vinte anos de prisão é demais para conceptualizar. Mas, uma realidade para alguns. Todos nós falamos, de “boca cheia”, por vezes, que fulano tal devia estar 30 ou mais anos preso, mas não temos consciência desse espaço temporal. Eu ainda não tenho 30 anos de vida! É como se toda a minha vida tivesse de resignar-se ao mesmo contexto, à mesma rotina, à privação de fazer escolhas. Será que conseguimos mesmo imaginar? Não, não conseguimos. Que estávamos a fazer há 30 anos atrás? E durante todo esse tempo? Onde fomos, o que fizemos, quem conhecemos? O que planeamos? Sim, uma vida.
A privação de liberdade, não se restringe apenas à reclusão, obviamente. Mas, a prisão talvez seja a realidade física de privação de liberdade mais próxima que a maioria de nós poderá vir a ter. Porque crimes há muitos, uns mais graves do que outros, mas nenhum de nós está imune de pisar o risco. Será que temos consciência que a liberdade, é no seguimento da saúde, amor, um dos nossos bens mais preciosos? Não, não temos. Somos adormecidos. E por isso continuamos a acreditar que 20 ou 30 anos não chegam! Desejemos antes, que essa realidade nunca nos bata à porta.
Feliz Natal, na “liberdade” das nossas vidas.
 
Cecília Pinto
 
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