20.3.12

 

O céu parecia-lhe diferente enquanto olhava pela janela num misto de tristeza e emoção. Era, contudo, diferente aquele céu, aquelas gentes, aquelas árvores.

Pela casa soavam as passadas apressadas de uma criança que descobre em cada recanto de um novo lar, a magia de um esconderijo.

- Ó mãe, já viste lá fora?! – Gritava.

- Há vaquinhas lá ao fundo!

Era uma aventura para aquela criança urbana, a quietude do campo. Sua mãe trazia um rosto carregado, de quem traz às costas, ao peito, à cabeça, no coração, um enorme baú de emoções reprimidas, memórias insanas, toda uma vida arrastada por correntes aos pés. Porém, naquele novo céu, que lhe parecia maior, porque prédios não o emolduravam mais, sentiu que poderia haver alguma esperança.

- Filha, vem ajudar a mãe a arrumar as malas – pediu.

 

Assentaram que nem uma luva na casa nova que as acolhera. A criança descobria todos os dias uma nova coisa que a Natureza tinha para lhe mostrar. Descobria também que o dia-a-dia, tinha mais calmaria, mais risos, gargalhadas, menos confusões naquele sítio.

A mãe acordava por vezes sobressaltada à noite, por um ruído. Havia tantos novos ruídos. Ruídos diferentes, porém. Ao início custava-lhe a adormecer. O baú das memórias assustava-a. Sabia que não estava desamparada, não estava só. Tinha gente por perto. Gente boa. Mas aquelas memórias enfiavam-se-lhe nos sonhos. Malditas!

- Maldito! – Pensou, enquanto rangia os dentes.

Recordava tantas vezes o dia em que decidira não mais voltar. Não voltar mais àquela vida de dor, sofrimento, vergonha. Vida de medo. Tinha sido precisa tanta coragem para deixar tudo para trás. Todos. Todas as suas coisas.

- Que vida injusta, Senhor. Eu! Eu é que tenho de mudar!!?? Nada fiz de mal, e aqui estou eu refugiada de todo o meu mundo de outrora – revoltava-se.

Perdera tanto. Mas não perdera a vida, tantas vezes ameaçada, nem perdera a filha, que sentia mais feliz.

- Desgraçado! – Sussurrava por entre lágrimas. E ainda pensei, que mudarias! – Pensou para si.

 

Os dias foram passando debaixo do céu novo. Os ruídos tornaram-se naturais, já não assustavam.

A criança brincava na erva, debaixo do castanheiro, como se sempre tivesse sido ali a sua casa.

Brincava com os seus amigos imaginários, podia ser tudo o que quisesse!

Viu a mãe a aproximar-se, chamou-a, para ao pé de si e disse:

- Mamã, quando for grande vou ser bonita como tu! E vou ter um namorado! – Exclamou!

- Ah, sim? – Retorquiu a mãe.

- Sim! Vai ser bonito também! – Apressou-se a afirmar.

- E que mais? – Espicaçou a mãe.

- Não vai ser como o pai – disse a criança enquanto passava os olhos pela relva verdejante.

A mãe sorriu, sem conseguir disfarçar a lágrima que se evadia.

 

Cecília Pinto

 

Link deste ArtigoPor Mil Razões..., às 02:05  Comentar

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