Foi em 2001. Eu tinha trinta e três anos e a convicção plena de que já sabia tudo sobre a vida. Acontece muito, penso eu, ou pelo menos a mim aconteceu-me. Sabia tanta coisa… agora cada vez sei menos. Mas naquela altura, sentia que o mundo era meu e que tinha descoberto qualquer coisa que escapava a todos. Por vezes, a arrogância não é mais do que ignorância e a ignorância não é mais do que ingenuidade. E ingenuidade é apenas ainda ter muito para aprender e não saber disso.
Estávamos em Setembro e eu viajava de carro pelos States, em pleno Setembro de 2001, logo a seguir aos atentados. Estava de férias e sem rumo certo, a ir à deriva dos acontecimentos por uma América que sempre quisera conhecer. Tirando as apreensões a considerações próprias do momento e a inevitável vontade de fazer uma análise sociológica e pretenciosa daquele povo, colocado naquele momento impossivel de acreditar, para mim estava tudo bem. Tinha respostas para tudo.
Descía a costa desde São Francisco até Los Angeles, pela famosa Highway 1 cheia de curvas e beleza. A noite tinha sido passada algures em Big Sur. Onde tinha calhado, mas de encontro aos meus desejos. Demasiado Jack Kerouac, presumo. Eram sete da manhã e havia que seguir viagem. O sol tinha acabado de nascer, estava uma luz magnífica.
Não havia onde tomar o pequeno-almoço e eu entrei numa pequena cabana debruçada sobre o Pacífico, uma espécie de mercearia local, a única à vista por ali, à procura de algo para comer. Enquanto tentava decidir-me entre um muffin fat-free, ou all-brain, ou “normal”, e perceber qual era a diferença entre eles e qual ia melhor com uma taça de café americano, ouvi uma voz. Alguém me dizia olá e perguntava de onde era. Eu não sou famosa pela minha simpatia e sociabilidade, muito menos de madrugada e antes do café. Dirigir-me a palavra nessas condições é quase loucura. Mas os americanos não parecem conhecer os perigos dessa interpelação e qualquer coisa naquela voz me deu vontade de olhar, estimulou os meus sentidos.
Olhei. Era um senhor de, calculei eu, uns sessenta e muitos anos. Afro-americano, como se diz por aqueles lados, se calhar com mais idade porque eu não sou muito boa nesses cálculos. Tinha uma voz calma e um sorriso contagiante e, em vez de me parecer um desconhecido metediço, pareceu-me só um amigo de longa data que reencontava ali e com quem tinha que falar, por algum motivo. Expliquei-lhe que era portuguesa, do Porto; que estava de férias e que lamentava muito o que se tinha acabado de passar. Que, se não fosse isso, estava a adorar as férias e que Big Sur era tão magnífico quanto sonhara.
Ele respondeu que sabia onde Portugal era (é perto de Paris, não é – para um americano, por acaso é mesmo. Eu disse que sim). Ele explicou que tinha um sobrinho a estudar em Paris. Trocamos mais meia dúzia de palavras, eu fui pagar e disse-lhe que tinha que ir embora mas que tinha gostado muito de o conhecer.
Ele sorriu para mim.
- You go now, girl. And enjoy your life, because it’s precious.
Eu sorri de volta, “thanks I will, stay well”, enquanto saía, e ainda ouvi novamente, “enjoy your life”.
Nunca mais o vi, às vezes duvido se foi real, não me recordo sequer como se chamava. Mas o que é certo é que, quando me vou abaixo, quando estou lá no fundo do poço, vejo-me de novo naquela falésia, numa cabana rústica, com aquela luz de início de dia em que tudo é possível e ouço aquela voz a dizer-me, basicamente, para ser feliz todos os dias.
Atualmente só sei que nada sei. Mas há uma coisinha que eu sei: aquela foi a lição mais importante da minha vida.
Dora Cabral