Foto: Norway – Henning Sørby
Uma após outra vai pisando as traves que servem de escada, monte abaixo, em direção ao rio. Estão velhas e gastas as traves que alguém, há muito tempo, colocou em pequenos socalcos de terra e pregou a pequenos pilares, também estes de madeira gasta como as traves que amparam. O rio da Sabedoria, assim se chamam as águas que correm lá no fundo, no lugar onde um monte acaba e outro começa, fascina-o. Mesmo à distância as suas águas exibem uma transparência e uma frescura irresistível. Anseia por se banhar nessa beleza e beber da sua sabedoria. Caminha há muito tempo mas está longe de chegar, a distância que o separa parece aumentar a cada passada e abana-lhe a certeza de o conseguir. Olha para trás na tentativa de se confortar com o caminho já percorrido mas parece que não saiu do lugar, o cimo do monte continua ali, um pouco acima da sua cabeça.
Estuga o passo e desce os degraus dois a dois. Tem que chegar ao rio antes que anoiteça, e o sol já parece esconder-se no monte do outro lado do vale.
Começou por ser um vulto indecifrável o que viu lá longe, mas foi crescendo e ganhando forma à medida que ficava mais perto. A criatura à sua frente caminhava devagar, primeiro, um pé tateante, depois, quando o lugar lhe parecia seguro, pousava-o para avançar com o outro. Quando se apercebeu de que não estava só, perguntou:
- Quem se aproxima?
- Um ser como tu. Desço o monte até ao rio onde me vou refrescar e saciar a minha sede de saber.
- Sou cego e também vou para o rio, sê bondoso e deixa-me apoiar em ti, caminharemos juntos e juntos entraremos no rio da Sabedoria.
- Desculpa homem cego, caminho há muito tempo, estou cansado e tenho pressa de entrar no rio, se te acompanhar atrasarei a minha viagem. Vem no teu passo que acabarás por chegar.
Acelerou ainda mais.
Tinha decidido levar esta viagem até ao fim e as suas decisões eram irreversíveis.
- Viajante! Oh viajante! Ajuda-me!
- Quem pede ajuda e onde está?
- Aqui, nesta trave. Olha para baixo e ver-me-ás. Sou um pobre coelho que ficou preso neste buraco, tem misericórdia e solta-me.
- Não posso soltar-te coelhinho, demoraria muito tempo e eu tenho pressa de chegar ao rio da Sabedoria, terás que te libertar sozinho, vai tentando, de tanto tentares hás de conseguir.
O viajante continuou a caminhada.
Os degraus estendem-se à sua frente a perder de vista e o sol, ainda que baixo no horizonte, queima e dá ao lugar uma aridez que mais lhe aumenta o desejo de atingir as águas refrescantes da Sabedoria. Só, encosta abaixo, uma espécie de angústia apodera-se dele e atormenta-o. Sabe que desce o monte para entrar no rio da Sabedoria que corre lá em baixo, mas esqueceu-se de onde vem, não se lembra da sua casa e a memória libertou o registo do rosto de familiares e amigos. Apela para todos os sentidos mas não obtém resposta. Perdeu o passado nesta viagem irreversível.
- Viajante! Oh Viajante! Onde vais com tanta pressa?
- E quem tem curiosidade em saber?
- Sou eu, esta árvore aqui mesmo ao teu lado. - disse a árvore abanando os ramos para se fazer notar. E, continuou:
- Tenho sede e se me deres um pouco da água que está naquele poço, eu compensar-te-ei com a sombra dos meus ramos e com fruta suculenta.
- Não posso perder tempo contigo, a noite aproxima-se e eu tenho que chegar com luz ao rio para me poder banhar nas águas da Sabedoria. Espera que chova e a tua sede será saciada.
Exausto, continuou a caminhada.
O cansaço apoderou-se dele. Assaltaram-no dúvidas. Dúvidas sobre a existência do rio que corre lá em baixo. Mas não era razoável duvidar, ele bem o via com as suas águas transparentes e de onde estava sentia a aragem fresca e o aroma a juncos que por certo cresciam nas suas margens. Dúvidas sobre as razões desta sua empreitada para atingir as águas da Sabedoria, de que nunca antes tinha ouvido falar. Dúvidas de que o rio fosse o fim da caminhada e que a Sabedoria estivesse no lugar de chegada e não no caminho que percorria. E se interrompesse a viagem para a repensar? Não, não podia voltar atrás, os degraus que desceu, inexplicavelmente desapareceram e ele não vislumbrava outro caminho de regresso. Esta viagem era irreversível.
De repente, ali mesmo à distância de um passo, viu-se à beira de um precipício. Olhou para baixo e lá no fundo corria o rio alimentado pela catarata que brotava em força do meio da escarpa. As águas jorravam belas e ameaçadoras da tranquilidade e do silêncio do lugar. A luz que refletiam encandeava-o. Quis abrir os olhos que instintivamente se fecharam mas não conseguiu. A luz intensa, demasiado intensa, impediu-o de ver. As pálpebras não cederam à vontade de manter os olhos abertos. Quis recuar, afastar-se do precipício, mas perdeu o equilíbrio, faltava-lhe o chão, sentiu-se afundar. Estava em queda livre, quando batesse nas águas da cascata que alimentavam o rio, seria o seu fim. Irreversível! Estava em pânico. Num último esforço conseguiu abrir os olhos. O precipício desapareceu, o reflexo de luz intensa da catarata desapareceu e as águas cristalinas do rio já não corriam lá no fundo.
A cama onde estava deitado nunca antes lhe pareceu um lugar tão seguro.
Cidália Carvalho