Foto: The Little Mermaid – Eleanor Nelson
Olhou-a de soslaio. Sentiu o ar de desprezo com que a observava. Nada tinha feito, apenas limitar-se a ser diferente de todos os restantes. Nada que tivesse feito para que fosse, no fundo, diferente. Apenas, nascera dessa forma. Diferente. Diferente em maneira de ser. Em forma. Em tamanho. Em cor. Não em sangue, ossos, matéria.
Não compreendia como poderia, à partida, sem conhecimento prévio, julgá-la, de tal forma que a única coisa que poderia sentir era vontade de desaparecer. Correr dali para fora, para não sentir mais aquele desprezo percorre-lhe a espinha dorsal.
Não tinha quem a defendesse. Não tinha quem a apoiasse. Apenas a si. Mas não se sentia capaz de fazer frente a todos aqueles olhares, especialmente àquele.
Não sabia porque se sentia assim. Por que raio se sentia tão ferida apenas com um olhar.
Virou as costas. Mais uma vez isolada do mundo. Olhou o oceano agreste. O céu estava mais cinzento do que carvão. Sentia no ar carregado mais compaixão que os seres vivos que a rodeavam. Desfez as lágrimas, tal como as ondas rebentam na areia. Ao longe viu trovejar. Parecia apenas o seu próprio coração. Não aguentou mais e apenas chorou. Tal trovoada, com toda a sua intempérie.
Era apenas uma rapariga com raízes diferentes. Nada mais. Mas, parecia que vinha de outro planeta. Ali sentia-se à margem de todos. Principalmente quando a olhavam daquela forma. Como se fosse um mutante ou algo assim.
Na margem, apenas podia contemplar como os seres humanos podiam ser tão cruéis. Como podiam preferir o ódio, ao conhecimento. À descoberta. Como poderiam sempre achar que estavam acima da diferença, como se eles próprios não fossem diferença também.
Erguiam-se, assim, tantas, mas tantas paredes. Derrubavam-se tantas pontes. Perdiam-se tantas oportunidades.
Nem ela conseguia ver para além daquele olhar. Apenas frealdade. Mas porquê? Porquê esse desprezo? Não conseguia compreender. Nunca o sentira noutras paragens. Mas agora estava entregue apenas a esse isolamento. Junto deles, sentia-se uma ilha. Abandonada. Que ninguém queria jamais acercar-se. Como se estivesse contaminada. Só podia ser vista de longe, não fosse o risco de se perderem ali para sempre.
Nessa margem sentia, por vezes, vontade de se entregar ao mar. Como se este fosse o seu único amigo e no fim de contas, o único sentido para a sua existência. Perder-se no mar. Findar-se ali. Existir em forma de sal dissolvido em água. A única matéria nas redondezas que a compreendia. Ao contrário dos que da mesma matéria eram feitos. Nas suas ondas, ora revoltas, ora calmas, sentia-se de igual para igual.
Sempre que se acercava do mar, não era mais ilha. Queria ser oceano.
Passaram-se mais dias após o incidente do olhar. De repente, ao virar uma esquina, esbarrou-se, literalmente, com a mulher do olhar frio e cruel. Tocaram-se, por engano do destino. Sentiu um arrepio quando percebeu que se tratava da mesma pessoa. O olhar dela era agora de espanto. Imaginava que o espanto era pelo facto de por se terem tocado, a mulher não estava contaminada. Pediu desculpa pelo incidente, mesmo se mais uma vez a culpa não residia em si. Fora apenas um incidente. Tal como não se vê para além da aparência, não se pode ver para além de uma esquina.
A mulher balbuciou. Quase que engasgada. No entretanto, a rapariga sorriu-lhe timidamente. Não queria ser parte do mesmo gelo. A sua essência era líquida, não gelada. A mulher não sabia como reagir. Limitou-se a baixar os olhos e a partir. Sentiu-se estranha. Estiveram tão perto, tão mais perto do que a última vez que as suas almas se haviam cruzado. Mas, mesmo assim, sempre separadas. O que poderia provocar tal distância? As diferenças? Talvez se estivessem perto, percebessem o quão as diferenças podem ser menores do que as semelhanças.
No entanto, o mar parecia sempre o mais parecido a si. Incrivelmente.
Deixou-se ficar por ali, a ver o mar fundir-se com o horizonte, como se entre céu e mar não houvesse diferenças, mas fossem apenas um só. Embora fossem matérias diferentes, ou até a mesma, em diferentes estados, podiam contemplar-se, sem frieza, apenas com entrega e estar, constantemente, perto, embora tão longe entre si.
Cecília Pinto