8.11.11

 

“De volta à vida”.

Não me ocorre dizer muito a propósito. Não tenho experiências pessoais suficientemente interessantes para contar. Nunca voltei, porque nunca fui. Tenho-me mantido por aqui.

Podia falar do caso do meu pai, que depois de um enfarte do miocárdio, teve de ser ressuscitado com choques elétricos. Não sei quanto tempo esteve “ausente”, ou “morto”, já agora. Ele próprio nada tem para contar. Não se recorda de ter visto nenhuma luz branca, nem de ter tido nenhuma outra experiência transcendente com que nos pudesse surpreender. Não se lembra de nada.

E voltou exatamente o mesmo. Logo que pôde levantar-se da cama, tentou convencer uma enfermeira a dar-lhe um cigarro, às escondidas do médico.

O seu renascimento para a vida, nada trouxe de novo. Não lhe abriu o espírito e ele não se questionou sobre o sentido ou o valor da vida. Pensou apenas que se tinha “safado”, a custo, e que dali para a frente, tinha de ser mais cuidadoso.

Mas ele era ele, antes e depois, e como seria de esperar, não foi cuidadoso o suficiente e passados alguns anos, teve que ser submetido a uma cirurgia coronária, com triplo bypass. Dessa vez, pensou ter esgotado as oportunidades que a vida lhe oferecera e tentou, com relativa convicção, mudar de vida, achando que tinha renascido mais uma vez.

“De volta à vida”, terá pensado ele e nós.

 

O tempo passou, a vida foi de novo sendo tomada como algo garantido e seguro e ele voltou a ser quem sempre foi, vivendo o seu dia-a-dia, sorvendo o momento em cada passa de cigarro.

De vez em quando, se lhe perguntarem, talvez fale sobre a sua passagem pelo hospital de Coimbra, sobre o médico que o operou e concluirá mais uma vez, que a sorte lhe sorriu, sem saber de facto porquê. Logo a seguir, o mais provável, é que se lembre de alguma história mais exótica vivida na Índia, onde fez a tropa e rapidamente se esqueça de ter sido operado de peito aberto, onde lhe pararam o coração e o mantiveram a uma temperatura não aceitável para gente viva, durante horas.

 

Das duas vezes em que a sua vida foi interrompida, ele acabou por retomá-la da forma mais natural que sabia e todas as suas ações foram no sentido de uma continuidade relativa.

Renascer… dá afinal trabalho e exige demasiado.

 

Não há grandes ilações a tirar sobre este caso, mas ocorre-me dizer que podemos “morrer” várias vezes durante a nossa existência e voltar todas as vezes, com renovada energia, como se fôssemos viver algo novo e tudo passasse a ser diferente dali para frente, mas na verdade nós somos o que somos e vamos manter-nos assim, atravessando todas as interrupções da vida.

 

Teresa Moura (articulista convidada)

 

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28.10.11

 

Era mais uma das visitas que fazia por altura do Natal, como tantas outras. Sofia, encontrou o seu padrinho combalido mas sorridente, aconchegado no sofá e no calor do cobertor. A sua cabeça careca, que refletia o brilho das luzes natalícias, era estranha. Sim, é verdade que a idade já era avançada e o cabelo ia caindo, mas havia algo de anormal. Animado, o seu padrinho foi desfiando, orgulhosamente, o rol dos últimos acontecimentos e Sofia foi percebendo o quanto havia perdido com a sua ausência: dores de cabeça, mal-estar, idas ao hospital, diagnóstico, operação e recuperação. “Como foi possível? Tudo tão rápido….”. Sofia procurava recuperar do choque das notícias que recebia, ao mesmo tempo que procurava nos olhos do seu padrinho algo que pudesse não estar a ser dito em palavras. Mas tudo o que encontrou foi alegria, muita, pelo sucesso da operação, pelo Natal que passaria com a família, os filhos e os queridos netos. “Estou feliz Sofia, o pior já passou! Dá-me um abraço!”. No caminho de regresso a casa, as emoções ainda à flor da pele turvavam os pensamentos de Sofia. O alívio de que, afinal, estava tudo bem e não passara de um grande susto não era o suficiente para abrandar a tristeza de não ter estado ao seu lado a apoiá-lo, com palavras, com carinho, com a sua presença. “Mas sim, ficou tudo bem e isso é que interessa” – dizia Sofia para com os seus botões na difícil tentativa de encontrar algum reconforto.

 

O Novo Ano chegou. Com ele novas esperanças e projetos e a tristeza de Sofia ia tornando-se mais leve a cada dia que passava. Até que um dia, receou atender uma chamada. O nome que insistia piscar no visor do seu telemóvel era tão raro como preocupante e não augurava nada de bom. Os piores receios de Sofia confirmaram-se e daí foi diretamente para o hospital. Nos olhos do seu padrinho, uns meses antes, havia apenas encontrado alegria sincera. Contudo, o susto tornara-se numa certeza, irremediável e fatal, e a recuperação não passara de uma ilusão. Algumas semanas depois, o homem que visitava religiosamente já não parecia o mesmo que sempre conheceu. Não reconhecia na sua face o carinho dócil dos seus olhos e o sorriso terno de um menino. A doença flagela o corpo mas não se esquece de espezinhar a alma. Numa das últimas visitas, já só o corpo parecia marcar presença naquela cama fria. Em esforço, pediu a Sofia que se aproximasse. A sua voz era já fraca e apesar do grande esforço que fez foi apenas percetível um sussurro: “Sofia, estou a morrer…”. Encurralada entre a vida e a morte, Sofia não sabe se conseguiu conter as lágrimas que inundavam os seus olhos, enquanto lhe afagava a testa quente. Sorriu e disse “Não tenhas medo padrinho, eu estou aqui.”

 

Se é verdade o que dizem sobre os mortos viverem um pouco sempre que os recordamos, hoje trago o meu padrinho de volta à vida.

 

Liliana Jesus

 

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24.5.11

 

Sentou-se no sofá. Ainda tremia. Tudo parecia desmoronar. Maria não podia acreditar nas palavras do médico. Aquela doença. Ainda latejavam as palavras no seu cérebro: ”Senhora Maria, lamento informar, mas o tumor encontrado é maligno. A Senhora Maria tem cancro”. A partir dali deixara de ouvir. Fixara-se na sentença que o médico proferira.

- “Cancro???” – repetia aterrorizada. Como podia estar a acontecer-lhe a ela, que até tinha uma vida saudável.

- “Vou morrer” – desabafaram as lágrimas pelo seu rosto.

 

Maria fora sempre uma mulher enérgica. Tinha uma família da qual se orgulhava e a fazia sentir amada. Era realizada profissionalmente, adorava o que fazia. Maria, era uma pessoa contente com a sua vida. Sempre tudo tivera um rumo.

Após a faculdade, tinha arranjado trabalho na área. Conhecia já Francisco e pouco tempo depois acabariam por se casar, numa cerimónia magnífica, tal como ambos sonharam. Daí para frente a rotina tornou-se um clássico, mas ambos sempre gostaram de desafios e novos projectos, e por isso não tardou a terem filhos e sentirem-se abençoados pela vida. A vida que, num contratempo ou outro, os habituara a sorrir. Não era comum questionar a existência ou até o sentido da vida, já que sempre o destino se encarregara de lhe traçar bons trilhos. Viviam numa espécie de véu que os fazia sentir protegidos, com sentido, como se tudo se encaixasse perfeitamente.

 

Caíra como uma pedra num charco aquela notícia. Francisco nada sabia sobre a doença oncológica de Maria. Maria não queria preocupá-lo com algo que poderia ser nada. Quando ouviu o som metálico da chave na fechadura, Maria estremeceu.

- “E agora?” – pensava. “Como lhe vou dizer que vou morrer?”.

Francisco entrou. Como sempre, fez os gestos do costume, mergulhado no seu automatismo.

- “Amor, cheguei” – anunciou.

Maria manteve-se intacta. Francisco estranhou. Subitamente pressentiu algo.

- “Maria, está tudo bem?” – perguntou preocupado.

A face de Maria tinha as marcas das lágrimas escorridas.

- “Meu amor, que se passou?” – insistiu Francisco.

- “Tenho Cancro” – respondeu secamente Maria.

Francisco estarreceu. Sentiu-se quebrar. “Não faz sentido!! Cancro?”. O mundo desabara. Imediatamente Francisco pensou na morte. Abraçou a sua mulher. Maria em prantos gritava “Vou morrer, vou morrer!!”.

A noite chegara. Estavam ambos deitados na cama sem conseguir deixar de fixar o tecto. Maria sentia-se confusa. Estava amedrontada com a ideia que tudo poderia acabar. Nunca pensara propriamente na possibilidade de morrer assim. Sempre tivera uma vida sem dissabores. Nada daquilo fazia sentido para si. Como era possível, de um momento para o outro, tudo acabar? Simplesmente não fazia sentido. Porquê a ela? Porquê agora? Que sentido tinha ter vivido uma vida de sonho para agora acabar de uma maneira tão terrível? Que sentido tinha a vida afinal?

 

Levantou a cabeça cansada. Estava nauseada. Aquele ciclo tinha sido mais desgastante. Sentia-se fraca. Mas sabia que era normal. Dirigiu-se à cozinha para beber um gole de água. Sabia que Francisco estava a chegar. Queria muito estar no seu colo, com o amor da sua vida. Os braços de Francisco confortavam-lhe a alma e davam-lhe ânimo para combater o Cancro.

Algumas semanas tinham passado desde o choque da notícia. Maria começara a tentar viver um dia de cada vez, como tanto lhe diziam no hospital quando fazia os tratamentos. De certa forma, Maria estava mais desperta para a vida. Para os pormenores. Para quem estava a seu lado. Houve tempos em que nada fazia nexo. Após se confrontar com a morte, com o medo, após discutir com o universo, Maria começara a aprender a sua condição humana, a sua fragilidade. Aceitara o que o destino lhe colocara no caminho. Mas não se conformava em desistir. Francisco não deixaria.

Era como os passarinhos que todos os dias a acordavam. Nascera, crescera, dera à luz, e agora estava na luta pela vida que, um dia, naturalmente, acabaria. Como a de qualquer ser vivo. Maria, percebera que o sentido da vida era ter sentido. Um sentido seu. Percebeu que uma pessoa sem sentido já estava morta, mesmo que organicamente viva. Mas muita vida existia dentro de Maria. Tinha vontade de viver. Viver cada minuto que ainda tinha. Se um dia, por uma questão genética, ganhara vida por puro acaso, não pretendia desperdiçar nem um minuto dessa vida, que inevitavelmente, num certo minuto acabaria por findar. Assim, sem mais nem menos.

 

Cecília Pinto

 

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8.2.11

 

Há três semanas que aqui estou. Três longas e eternas semanas. Como era possível o tempo passar tão depressa lá fora, parecia que eu andava sempre a correr atrás do que me faltava ainda fazer, passava tudo tão rápido. Queixava-me tanto… queixava-me porque tinha de andar de transportes públicos, porque não tinha dinheiro para férias, porque a minha vida era uma rotina entediante, porque nada de especial me acontecia, porque nunca tinha tempo para nada, porque tinha demasiadas responsabilidades que me impediam de fazer o que me apetecesse.
 
E agora o tempo parou. De um momento para o outro, a minha vida parou. A rotina quotidiana que me parecia tão aborrecida mas tão certa deixou de acontecer abruptamente. Esta vida enfadonha que me fazia sentir encurralado no meio das minhas obrigações deixou de existir. Subitamente fiquei sem chão. Bastou receber um telefonema. A partir daí um atropelamento de diagnósticos e más notícias levaram-me ao ponto onde estou agora, este interminável ponto. Há três semanas que tudo ficou em suspenso, há vinte e três dias que estou enfiado nesta cama. Para além das dores e das náuseas a minha vida deixou de acontecer. Nas poucos momentos em que consigo ver televisão fico em primeiro surpreendido como parece estar tudo normal lá fora. Como é que eles fazem para continuar a rir, a actuar e a cantar? Este sentimento dura apenas uma fracção de segundo, rapidamente tomo consciência da minha realidade. É claro que está tudo normal, o mundo não acabou só porque a minha vida se desmoronou. A vida continua lá fora, sem mim.
 
O quanto eu dava para poder sair à rua, apanhar sol, caminhar normalmente, correr atrás deste bendito metro. Fi-lo tantas sem lhe dar a devida importância. Era livre sem saber. Só sabia queixar-me, desejar aquilo que não tinha. O quanto eu dava para me levantar e sair por aquela porta fora, correr até onde o fôlego me deixasse. Mal tenho forças para me aguentar sentado. Recebo todo o apoio dos meus, visitas, telefonemas mas sinto-me tão longe deles, tão isolado. Apesar das muitas manifestações de carinho, ninguém pode aliviar este sentimento de opressão, ninguém me consegue libertar. Depois de estarem comigo, todos saem por aquela porta e eu fico aqui, preso, por quanto tempo ainda? A dois metros de distância, aquela porta abre-se e fecha-se tantas vezes durante o dia, mas nunca é para mim.
 
Estefânia Sousa
 
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4.5.10

 

Alguém disse, recentemente, que sobre a morte não se pode falar com certeza, apenas se pode especular; aquilo de que se pode falar com certeza é da vida e do percurso que cada um faz.

Vi há dias um vídeo que me impressionou bastante, de um professor universitário a dar a última aula. O que me impressionou não foi o facto de ser um qualquer professor a dar uma aula sobre a mesma matéria que sempre dera, mas sim o facto dessa última aula ser consequência de um cancro do pâncreas, incurável, o que lhe dava uma esperança de vida de apenas alguns meses.

Ao contrário do que seria de esperar, esta aula não teve nada de auto-comiseração, ou de lamentação pela sorte que se avizinhava, antes pelo contrário, falava dos seus sonhos e do que tinha aprendido com a frustração de não ter atingido alguns deles e com a satisfação de ter atingido outros...

 

Mas mais tocante do que falar sobre esta palestra, é vê-la e ouvi-la com todos os sentidos e sentimentos receptivos:

 

 


Alexandre Teixeira

 

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7.3.09


 


Naquela tarde, depois de mais um dia de trabalho, subo a rua em direcção ao autocarro que há-de levar-me a casa. É tarde. Está muito movimento e a minha preocupação é andar depressa para não atrasar o jantar. Cruzo-me com as pessoas sem reparar nelas. Não teria chamado a minha atenção se não fosse a sua figura frágil e o seu andar cambaleante; alguma coisa estava errada com aquele homem que há muito passou pela juventude. Olho para trás na tentativa de perceber. Lá estava ele, agora sentado no degrau de um edifício.

Não sem algum desagrado pelo contratempo, mas a sentir que deveria fazer alguma coisa, volto para trás e dirijo-me a ele perguntando se se sentia bem.

Não, não sentia.

Tinha saído de casa pela manhã e a pé, tinha ido até ao Instituto de Oncologia fazer o tratamento. Agora estava de regresso a casa, novamente a pé. Como não tinha comido estava muito fraco. Quis dar-lhe algum dinheiro e uma senha para ir de autocarro.

Não aceitou. Teria muita vergonha se aceitasse.

Desde que a mulher morreu que vive sozinho, esconde as dificuldades dos vizinhos, porque, segundo ele, tem muita dignidade. Reparo que, apesar de cansado e frágil, tem ar muito asseado.

Insisto para que aceite a senha de autocarro. Perante a recusa despeço-me e retomo o meu caminho. Pareceu-me que tentei fazer o que podia. Não entendia pois aquele mal-estar que me intranquilizava.

Nos dias seguintes pensei muito naquele homem. Disse a mim mesma que se nos voltássemos a cruzar, iria conseguir que ele aceitasse a minha ajuda.

Passaram uns meses. Uma tarde, com uma terrível dor de cabeça, saio mais cedo do emprego para ir descansar. A enxaqueca estava a consumir-me e só pensava em chegar a casa para me deitar.

Eis que de novo e no mesmo sítio me cruzo com ele. Estava mais frágil e ainda mais cansado. Tão cansado que não se fez rogado e aceitou a ajuda monetária, desta vez para ir de táxi porque o seu estado, já no limite das forças, não lhe permitia ir até ao autocarro. Agarrou-me as mãos e beijou-as. A situação era-me desconfortável e afastei-as devagarinho. Voltou a abordar a perda da mulher e o facto de morar sozinho. Interrompi-o dizendo que já me tinha falado disso. A minha cabeça continuava a doer e parecia rebentar a qualquer momento.

O homem, sentado no degrau, tentava levantar-se sem qualquer êxito. Do nariz, um leve fio de sangue denunciava mais um tratamento em Oncologia. Uma vendedeira de rua que entretanto se aproximou, ofereceu-se para o levar a casa. Tanto melhor, poderia comer uma boa refeição com o dinheiro que lhe dei para o táxi.

Ainda olho para trás a tempo de vê-la a ajudá-lo a entrar para o seu furgão. Experimentei uma sensação de alívio. Resolvi um problema àquele homem. Pontual, mas resolvi. Esta sensação foi muito curta porque aquela pessoa não me saía do pensamento. Novamente aquele mal-estar. Aquela mesma intranquilidade.

Hoje, e porque não há duas sem três, espero ter a sorte de me cruzar novamente com ele. Desta vez sei o que tenho a fazer.

Querido amigo, vou dar-lhe tempo. Vou deixar o jantar para mais tarde, aguentar qualquer dor de cabeça, sentar-me consigo no degrau do edifício, dar-lhe as mãos e vai poder falar-me de como é viver sem a sua companheira de tantos anos, de como é difícil enfrentar uma doença e os tratamentos violentos a que é submetido. Vai poder falar-me da sua solidão, dos seus medos… Vai poder falar-me do que entender…

Eu vou escutá-lo!

 

Cidália Carvalho

(Imagem: Cabeça de Velho, de Candido Portinari)

 
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