2.12.11

 

Bom, agora coloco aqui este monte de papel, as esferográficas ali e aquele canto fica para os arquivos. Está impecável. Limpinha. E cheira a novo. Assim dá gosto. Vou mantê-la sempre assim. No dia seguinte, no fim do dia, verifico se está tudo no sítio, desligo o candeeiro e abalo satisfeito. Dois dias depois, no resto da semana, todo o mês, todo o ano, todo o tempo, o mesmo procedimento, a mesma energia, a mesma motivação: deixo sempre a minha secretária imaculadamente asseada. Ao meu mundo mantenho-o assim, arrumado, estável e controlado. Sou feliz assim.

 

A secretária da minha colega, por seu lado, está arrumada com a delicadeza de uma escavadora. Não sei como é que é possível! Está tudo fora do sítio. Aquela mesa envergonha os piores teatros de guerra. Por vezes nem o computador desliga. O mundo dela é um caos. Ninguém pode ser feliz assim. Ela dantes não era assim. Há muito que não nos falamos. O trabalho não deixa. E eu também não quero. Ela andava a cansar-me lá com as coisas dela.

Ela é uma besta, só pode. Quem é que consegue trabalhar naquelas condições? E aposto que aquelas gavetas estão cheias de tralhas velhas e inúteis. Se bem que raramente as abra. Provavelmente para que eu não sinta o cheiro de uma fatia de pizza por lá esquecida há dias, sei lá. Ou para que eu não veja o resto da anarquia. Ou, o mais certo, não as abre porque não cabe lá mais nada. Ah Ah!

 

As minhas não: na de cima estão as coisas de uso comum, os clipes, o agrafador e o furador, as minas, os marcadores fluorescentes e as cargas para as esferográficas, claro; na do meio, que é maior, estão as pastas dos documentos urgentes e a correspondência a expedir; na última, a maior de todas, estão as minhas coisas pessoais, postais, fotografias, recordações da minha infância, gentes da minha história, uma bola de golfe autografada, o número do jornal da empresa quando fui o funcionário do mês em 2003, o recibo do jantar com a Isab… Hum… Não! Com a Elsa (aquilo não deu em nada mas comi lagosta), o galhardete da Junta de Freguesia pela participação no torneio de xadrez do ano passado… Eu sei, eu sei: sou um pouco vaidoso.

 

Agora que penso nisto, talvez espreite as gavetas dela… Deixa-a ir-se embora… Não! É melhor não mexer. Pode notar… Notar o quê? Naquela confusão? É! Ela hoje sai mais cedo e eu vou aproveitar. Aposto que estão cheias de lixo.

Foi-se. É agora. Hum… Deixa cá ver: gaveta de cima… Tal como suspeitei: lixo. Batons, vernizes das unhas (alguns abertos e secos), escova de cabelo, uma almofada de pó-de-arroz esquecida, uns cartões de lojas, uma lima das unhas, coisas de gaja. Deixa ver a segunda: revistas, recortes de vestidos, fotografias de quintas para casamentos, um livro sobre decoração de interiores, outro sobre maternidade e este aqui, eh eh, dicas de autoajuda. Deve ser para a ajudar a arrumar a secretária. Agora estou curioso: o que é que ela terá na terceira? Hum… Está leve. Parece vazia. Está vazia! Vazia? Deixa-me espreitar. Não! Vou abri-la toda. Que é isto? Uma rosa em cima da fotografia da filha?

 

Joel Cunha


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8.12.09


 


Logo no início de Novembro todos contavam, de forma decrescente, a chegada do Natal e ela, sem saber, começava, de uma forma crescente, a contar o início do fim. Nenhum Natal poderá apagar, ou fazer esquecer, as feridas que se abriram no seu coração e que esconde na sua alma.

Estranhamente, não havia qualquer alusão ao Natal que se aproximava; a ausência por completo de ornamentações augurava um mau presságio. Era uma casa que se esmerava por requintadamente anunciar a chegada do Natal, com a sua colossal árvore decorada com Pais Natal de peluche, anjos, bonecos de neve, peúgas e peuguinhas, o presépio e as velas típicas da época. Nesse ano havia apenas o silêncio a enfeitar cada corredor e a rechear sítios que, em anos anteriores, eram preenchidos com arranjos vermelhos, verdes e dourados.

Sair à rua e ver as luzes, as montras decoradas, prendas para uns, presentes para outros, prioridades absolutas na vida de muitos, ouvir o Jingle Bells que ecoava por todo o lado, feria violentamente o seu espírito.

 

Foi-se aproximando o Natal e com ele a preparação, para que nada faltasse no momento prenunciado e previsto. Na última noite preparou o desfecho, indo de loja em loja comprar os seus últimos presentes… aqueles que lhe tinham sido antecipadamente pedidos: a camisa de noite quentinha, o robe, não esquecer os seus amigos de todos os momentos, os carapins, a manta para se aquecer e assim poder fingir um estado de um sono perpétuo e repousante.

Sem saber como, sorria, agradecia os simpáticos embrulhos que faziam, afinal era Natal…

 

No dia 24 desembrulhou prenda a prenda, peça a peça e foi-lhe descrevendo as cores, os modelos, os locais onde as tinha adquirido… Quando terminou, mesmo sabendo que já não era ouvida, disse-lhe: “- Estás linda! Sempre consegui dar-te mais estas prendas de Natal.”.

No dia 25 via-se por todas as ruas, papel de embrulho rasgado, fitas a esvoaçar com o vento, a levantar voo. As crianças brincavam e deliciavam-se, com os seus desejos satisfeitos, com a generosidade do Pai Natal. Pequenos aglomerados de pessoas reuniam-se à porta de alguém para iniciarem os festejos próprios da época. Naquele Natal não teve almoço… apenas um rasgão na sua alma que a impediu de, durante muitos anos, entender o significado e a importância do Natal.

Naquele Natal despediu-se, disse adeus, a uma das pessoas que mais amou… Naquele Natal enterrou o corpo daquela que lhe deu vida e a ensinou a amar. Naquele Natal disse-lhe, pela última vez na sua presença: “- Amo-te mamã.”.

Ainda hoje as luzes de Natal a agridem, a mania das prendas enlouquece-a, os falsos votos manifestados numa solidariedade fictícia enraivecem-na.

 

Mas dois “duendes” fizeram magia com o seu coração e com a sua alma. Para ela, o Natal é agora o sorriso e a euforia daqueles a quem deu vida. Espera que eles nunca deixem de dizer-lhe: “- Amo-te mamã, feliz Natal para ti.”, com um brilho nos olhos.

 

Susana Cabral

 
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25.3.09

 


 


- Vou telefonar para lhe contar que…

Parou repentinamente, ficou suspenso como se fosse um títere subitamente abandonado. Depois desceu, lentamente, e ficou sentado na cadeira.

 

Como era possível? Onze meses depois e o seu cérebro, por vezes, persistia, insistia em ignorar a realidade, teimava em não aceitar o que tinha acontecido, o que tinha mudado irreversivelmente.

Porquê? Toda a informação estava lá, tão exacta, clara, brutal e límpida como quando foi guardada: aquele telefonema às oito da manhã, profissional e contido, quase telegráfico, a informar que ela tinha morrido havia meia hora; a primeira vez que os seus olhos perceberam, através de uma porta entreaberta, o seu corpo já sem conteúdo, sem alma, sem calor; o último instante, no cemitério, no qual tomou consciência de que os seus olhos jamais voltariam a recolher, a actualizar aquela imagem.

Ficariam apenas as memórias. Até onde será possível manter as memórias? Como será que o tempo as altera, as desgasta, as corrompe, as corrói?

 

Sabia que aquele lugar ficaria ali, dentro de si, durante toda a vida que lhe sobejava. Pressentia que aquele vazio, aquela solidão que se instalou, estavam para ficar; quanto tempo ficariam? Provavelmente para sempre, até que fosse possível um novo abraço, até ser possível dizer tudo o que ficou por dizer.

 

FCC

 

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4.12.08


 


Apesar do tema ser idêntico ao do Bowlby, não é meu intuito vir aqui discorrer sobre psicanálise, nem tão pouco abordar o luto e a perda permanentes, derivados da morte de um ente querido, pelo menos não neste momento.


 


O luto e a perda que me traz aqui hoje, refere-se ao provocado pelas pessoas que em determinado momento se atravessam na nossa vida e que depois, por um ou outro motivo, tão depressa como entraram na nossa vida, saem. É indubitável que esta passagem e este contacto nos enriquece, nos traz alegrias, por vezes tristezas partilhadas e memórias de tempo "gasto" a conhecermo-nos. No entanto, quando termina, não conseguimos deixar de nos sentir egoístas. Egoístas, no sentido de ficarmos tristes por deixarmos de estar com essas pessoas, apesar de, racionalmente, sabermos que a nossa perda ocorre, não por nossa causa, mas por motivos de força maior que, em muitos casos, resulta em situações melhores e mais satisfatórias para as pessoas que "perdemos".


 


É por causa desse misto de emoções que muitas vezes desejamos boa sorte e as maiores felicidades, quando, na realidade, pensamos "não vás, fica aqui comigo", apesar de sabermos que não é o melhor para a pessoa que agora parte. E lá ficamos nós entregues a nós próprios, obrigados a fazer um luto sem querermos, a uma perda que não sendo definitiva, não deixa de nos magoar e de nos deixar tristes.


 


Acresce a este sofrimento um outro, provocado pela sociedade de consumo imediato, que não nos dá tempo para fazermos o luto ao nosso ritmo e que quase nos obriga a "esquecer" e substituir esta amizade, com a mesma rapidez e simplicidade com que se estrela um ovo.


 


Pode ser de mim, mas questiono-me se esta rapidez toda e esta rotatividade forçada de amizades, será saudável. Não deveriamos ter mais tempo para fazermos o nosso luto tranquilamente e sem pressões...?


 


Alexandre Teixeira


 

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