11.10.11

 

Luís já cumprira seis anos da pena a que fora condenado. Esteve todo aquele tempo no mesmo estabelecimento prisional, na mesma cela. Os seus companheiros de cela foram mudando. E houve mais mudanças, algumas que o Luís observou, outras, lá fora, que nem consegue imaginar. Ia ter agora a sua primeira saída, o seu primeiro fim de semana a tocar a liberdade, dois dias entre pessoas que não fazem parte do seu mundo atual.

Nos primeiros três meses de prisão recebeu algumas visitas, do irmão e de um amigo de infância. Subitamente, desapareceram e não teve mais notícias nem visitas. Revoltou-se, culpou-se, resignou-se e habituou-se ao seu novo mundo, um mundo diferente, um mundo bem pequeno, com poucas caras.

A reeducadora não conseguiu encontrar o irmão, único familiar que conseguia referenciar. Para sair, tinha de ter uma referência, tinha de ter onde ficar. Mas quem referenciar? Mas onde ficar? Nos últimos seis anos só tivera os seus companheiros de cárcere e o pessoal prisional, só conhecera aquela cama dura onde deixava o cansaço da longa espera e a angústia da vida interrompida. A sua solidão, o seu isolamento, o seu abandono, pareciam querer contrariar todo o esforço de bom comportamento. Mais uma vez a reeducadora deu uma ajuda e conseguiu uma vaga n’A União. Estava tudo combinado: o Luís ficaria num quarto durante a sua saída.

No Luís, a ansiedade e a confusão debatiam-se. Tudo lhe parecia novo. O sorriso do guarda, sair o portão, ter dinheiro no bolso, entrar num autocarro, dirigir-se a um destino, com um papel na mão com uma morada escrita. Os carros, como estavam diferentes... mais redondos, mais coloridos. E as pessoas… as roupas eram diferentes.

N’A União mostraram-lhe o quarto. Era simples, mas parecia-lhe cheio de coisas e de conforto. Luís estremeceu de surpresa quando lhe entregaram a chave do quarto. Há tanto tempo que não pegava uma chave… Procurou na memória um momento como aquele, em que guardava uma chave que era sua, na algibeira; já não consegui encontrar.

Luís tinha fome. Sentiu vontade de, ao fim de seis anos, comer sozinho, longe da presença de outras pessoas. Saiu à rua procurou uma loja onde pudesse comprar comida para levar para o quarto. Encontrou um supermercado e entrou. Espantou-se com cada expositor, com cada prateleira, demorou-se a contemplar e a analisar cada artigo. Encontrou coisas que já não recordava existirem, de que há muito deixara de necessitar. Ficou ansioso por ter de escolher, mas escolheu, com brilho nos olhos e alegria no coração por de novo poder fazer as pequenas e quase inocentes escolhas do dia a dia.

De regresso ao quarto, experimentou deliciado um jantar a sós consigo mesmo, escolhido por si. Esticou-se na cama, fechou os olhos e sorriu. Não lhe pesava o passado. Ainda não lhe pesava o futuro. Sentiu a chave cair-lhe do bolso, para o colchão e o baixo ruído metálico rodopiou na sua cabeça. Sorriu. Percebeu que voltava à vida. Como mais ninguém, naqueles momentos, compreendeu os sinais de vida que, subtis e despercebidos, há em cada gesto, em cada objeto. Pouco depois adormecia, embalado pelo calor das suas descobertas. Dormiu o sono dos justos.

 

Fernando Couto

 

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15.2.11

 

A reclusão desempenha um papel basilar no sistema judicial português, ao isolar os indivíduos que constituam risco para a sociedade. Desta forma, os indivíduos afectos aos estabelecimentos prisionais cumprem pena por ordem judicial e pelos tipos de crimes mais gravosos.
Além deste aspecto punitivo, a reclusão agrega uma série de acções referentes ao tratamento penitenciário. Nesse sentido, durante o processo de reclusão é facultado ao recluso um conjunto de ferramentas que lhe permita modificar o seu comportamento, manter a sua saúde física e mental e providenciar as ferramentas para que, no futuro, se integre social e produtivamente na comunidade de origem, diminuindo, desta forma, a probabilidade de reincidência. Os programas de combate à propagação de doenças infecciosas e toxicodependência, de intervenção com delitos estradais, de prevenção da reincidência e da recaída, de intervenção com agressores sexuais, o acesso ao trabalho, ao desporto, à educação, entre outros, fazem parte desta estratégia.
Contudo, este aspecto ressocializador da execução da pena, valorizado particularmente pelas administrações prisionais, contrariamente ao desejo punitivo da opinião pública, acaba por ser um pouco utópico perante a presente realidade carcerária. Deveras, não existe capacidade do sistema para ressocializar todos os reclusos. Depois, nem todos os reclusos aderem a este processo ressocializador, uma vez que a sua adesão carece de sua anuência. Por fim, é impossível punir quando o recluso já tem direito a luxos como TV, DVD e Consola de Jogos na própria cela.
À parte deste aspecto particular do tratamento penitenciário, a vida em reclusão é muito diferente do observado extra-muros. E aqui é importante ter em conta a subcultura prisional, que se relaciona intimamente com o ambiente prisional de cada estabelecimento prisional. O ambiente prisional é fruto da normatividade prisional, das suas privações e das características sociodemográficas e criminais dos indivíduos reclusos. Em Portugal, maioritariamente indivíduos jovens, com crimes e práticas de abuso ou dependência de substâncias, com nível diminuto de instrução e formação profissional, provindos de grupos socioeconómicos desfavorecidos.
A necessidade de adaptação deste estrato populacional às privações do ambiente prisional, deu lugar ao surgimento de uma cultura com valores, normas, crenças, atitudes e comportamentos específicos da reclusão - a subcultura prisional.
Existem essencialmente duas abordagens teóricas para se conceptualizar a adaptação à subcultura prisional, a perspectiva da privação e a perspectiva da importação. Segundo a perspectiva da privação, o processo de encarceramento é sinónimo de privação da liberdade, privação de bens e serviços, privação de relacionamentos heterossexuais, privação de autonomia e privação da segurança. A privação destes direitos e necessidades humanas elementares é responsável pelo mal-estar físico, psicológico, emocional e social do recluso, que, para sobreviver, para se adaptar, vê-se obrigado a adoptar um código de conduta informal peculiar da comunidade carcerária. O recluso aprende a ser camarada, não ser delator, não mostrar fraqueza e a demonstrar hostilidade para com o staff. Em sentido oposto, de acordo com o modelo da importação, a adaptação à vida em reclusão será moldada pelas experiências de socialização pré-prisão. Assim, o recluso em vez de adoptar o código de conduta informal peculiar das instituições prisionais, adopta sim, os mesmos valores, atitudes, crenças, normas sociais, regras e comportamentos disruptivos internalizados enquanto vivia em liberdade e, como tal, importa esses comportamentos e atitudes para a prisão. Desta forma, aspectos relacionados com a pobreza, exclusão social e saúde em geral irão influenciar demograficamente a população prisional e serão os reclusos provindos de grupos socialmente excluídos que apresentam maior risco de saúde mental e física inerentes ao contexto de origem.
Contemporaneamente, é possível encontrarmos uma ampla gama de normas, crenças, valores, atitudes e comportamentos de acordo com o tipo de prisão e de população prisional. Sem nos esquecermos que actualmente as prisões recebem diariamente indivíduos com perturbação mental, que deveriam estar internados em instituições psiquiátricas, nunca nas prisões, criaram-se as condições ideais para as elevadas taxas de vitimização a reclusos e guardas, suicídios e de introdução, distribuição e consumo de substâncias verificadas em reclusão.
Este triângulo amoroso molda e moldará o sofrimento e desespero em contexto prisional. Desmotiva e continuará a desmotivar os funcionários prisionais, particularmente, perante a abismal incapacidade ressocializadora da reclusão.
 
Nuno Alexandre Costa Moreira
(Articulista convidado)
Unidade de Desenvolvimento Social do Instituto da Segurança Social
 
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11.2.11

 

J. J. Russeau (1712-1778) refere "O homem nasce livre, e em toda parte é posto a ferros. Quem se julga o senhor dos outros não deixa de ser tão escravo quanto eles."
 
Reclusão poderá ser privação de liberdade. Que liberdade? A do movimento físico? Ou poderá ser o espartilho, o condicionamento de todas as escolhas que fazemos forçados? Poderá dizer respeito a toda a frustração inerente a cada decisão que fazemos? Seremos nós reclusos?
Dentro ou fora da instituição, qualquer que ela seja, podemos sentir-nos, vermo-nos como um ser sem liberdade ou um ser completamente livre e feliz.
Teremos evoluído? O que mudou? Ontem enclausuravam-se os “loucos” em instituições de reclusão, hoje faz-se exactamente o mesmo. Retira-se a capacidade de escolha ao homem em minutos e institucionaliza-se o “louco”.
Por quanto tempo? Depende do tipo de resposta que o desviante dá à sociedade e depende de quanto tempo isso demora. E quando o afastamento dura tanto que parece já não haver outra realidade? E depois? Será que o inadaptado quer regressar ao outro lado? O que o espera lá fora? Ali é a sua casa, o seu mundo. Lá fora não tem nada…. E voltam a dizer-lhe o que fazer, o que comer e comprar, como comportar-se e viver a sua vida e, inclusive, o que pensar… Enfim, não muito diferente do hospital psiquiátrico ou de um qualquer estabelecimento prisional.
Ouvimos desabafos sobre o tormento de viver o quotidiano, numa sociedade cada vez mais egoísta e individualista. Assistimos a uma intransponível incomunicabilidade do ser humano que se fecha em si. 
Liberdade ou reclusão pode ser um sentimento puramente interior, um estado de espírito. Perdido, terrivelmente só, preso em nós mesmos, nos nossos próprios pensamentos, ou refém de uma multidão, de uma cultura, ou de valores morais. Ou livre, magistralmente livre, num qualquer espaço de cinco metros quadrados?
A reclusão é muitas vezes uma indescritível solidão. Às vezes é uma necessidade premente de fugir desse insistente ruído. Pode ser sinónimo de paz, reunião e união interiores. E quando este movimento, este caminhar, é realizado numa só direcção? Podemos assistir à alienação total do ser ou da realidade circundante. Por outro lado, estes estados temporários podem traduzir-se por um fluir de reflexões, por um eterno retorno, por um entrar e sair, por um pasmar na linha do horizonte alternado por um olhar atento ao ser.
Quero silêncio, quero afastar-me, ouvir os meus pensamentos… longe deles e daquilo. E, às vezes, imensas vezes, vezes sem conta, quero ser escutado, sentido e amado, estar no meio e com todos e quero rir, rir muito com eles.
 
Álvaro de Campos, in "Poemas", em “Esta Velha Angústia”, escreve: 
(…) Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim... (…)
 
Ana Teixeira
 
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8.2.11

 

Há três semanas que aqui estou. Três longas e eternas semanas. Como era possível o tempo passar tão depressa lá fora, parecia que eu andava sempre a correr atrás do que me faltava ainda fazer, passava tudo tão rápido. Queixava-me tanto… queixava-me porque tinha de andar de transportes públicos, porque não tinha dinheiro para férias, porque a minha vida era uma rotina entediante, porque nada de especial me acontecia, porque nunca tinha tempo para nada, porque tinha demasiadas responsabilidades que me impediam de fazer o que me apetecesse.
 
E agora o tempo parou. De um momento para o outro, a minha vida parou. A rotina quotidiana que me parecia tão aborrecida mas tão certa deixou de acontecer abruptamente. Esta vida enfadonha que me fazia sentir encurralado no meio das minhas obrigações deixou de existir. Subitamente fiquei sem chão. Bastou receber um telefonema. A partir daí um atropelamento de diagnósticos e más notícias levaram-me ao ponto onde estou agora, este interminável ponto. Há três semanas que tudo ficou em suspenso, há vinte e três dias que estou enfiado nesta cama. Para além das dores e das náuseas a minha vida deixou de acontecer. Nas poucos momentos em que consigo ver televisão fico em primeiro surpreendido como parece estar tudo normal lá fora. Como é que eles fazem para continuar a rir, a actuar e a cantar? Este sentimento dura apenas uma fracção de segundo, rapidamente tomo consciência da minha realidade. É claro que está tudo normal, o mundo não acabou só porque a minha vida se desmoronou. A vida continua lá fora, sem mim.
 
O quanto eu dava para poder sair à rua, apanhar sol, caminhar normalmente, correr atrás deste bendito metro. Fi-lo tantas sem lhe dar a devida importância. Era livre sem saber. Só sabia queixar-me, desejar aquilo que não tinha. O quanto eu dava para me levantar e sair por aquela porta fora, correr até onde o fôlego me deixasse. Mal tenho forças para me aguentar sentado. Recebo todo o apoio dos meus, visitas, telefonemas mas sinto-me tão longe deles, tão isolado. Apesar das muitas manifestações de carinho, ninguém pode aliviar este sentimento de opressão, ninguém me consegue libertar. Depois de estarem comigo, todos saem por aquela porta e eu fico aqui, preso, por quanto tempo ainda? A dois metros de distância, aquela porta abre-se e fecha-se tantas vezes durante o dia, mas nunca é para mim.
 
Estefânia Sousa
 
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4.2.11

 

Manuel chegara a casa não havia uma hora. Fora ao hospital saber notícias do seu filho João. Tinha sido avisado pela direcção do estabelecimento prisional: um recluso chegou fogo à sua cela – incendiou o colchão, talvez numa tentativa de suicídio. Alguns reclusos tiveram de ir ao hospital. Escoriações sem gravidade, algumas queimaduras. O João estava bem, dali a pouco teria alta e voltaria ao estabelecimento prisional.
Mais uma prova para o Manuel, para o seu coração de pai. Nunca imaginou ver o seu filho condenado, preso. Sabe que o João é bom rapaz, mas teve um momento de fraqueza. Há momentos assim, de fraqueza, que estragam a vida a um homem. Uma pessoa tem muitas coisas dentro de si e a fraqueza é uma delas. Qualquer um de nós pode um dia, ter um desses momentos de fraqueza, e ver-se por isso fechado entre quatro paredes, a cumprir uma pena. Mas se isso acontecer, não deixamos de ser pessoas, não passamos a ser diferentes, a ser menos, por causa disso.
Manuel sofre pelo João, cumpre pena com ele, mas em liberdade. Continua a reconhecê-lo como filho, continua a amá-lo. E sabe que um dia a pena do João terminará, que ele recuperará a liberdade e que a vida continuará, que nas prisões, todos os dias, continuarão a entrar e a sair pessoas como o João, como o Manuel, como todos nós.
Manuel sentou-se e procurou colocar a sua atenção noutras coisas, criar alguma distância, descentrar-se um pouco daquele acontecimento que lhe marcou o final da tarde. Começou a ler as notícias na Internet. Lá estava a notícia do incêndio. Leu os comentários que algumas pessoas, anonimamente, foram colocando:
 
“Pena não fazerem serviço comunitário e contribuírem para a despesa que dão ao Estado. E se chegassem à noite cansados de trabalhar, de certo dormiriam em paz. Terapia de trabalho é o que lhes faz falta.”
 
“E que tal uma pena acessória de um mês a dormir no chão de cimento, para ele aprender a valorizar os objectos que colocam à sua disposição, para seu conforto!”
 
“Mais um que come à conta dos contribuintes e ainda não está contente com o hotel. Por mim, para além de levar um enxerto de porrada, ainda ia dormir no cimento até ao final da pena.”
 
“Se fosse eu o guarda prisional poupava dinheiro aos contribuintes portugueses, esquecia-me de passar no corredor por 15 minutinhos e se quando passasse na ala ele ainda estivesse vivo, aproveitava e abafava-o. Era menos um a sair em liberdade.”
 
Manuel ficou com o sangue gelado, pela leitura. Ficou paralisado, em choque pela desumanidade, pelo julgamento ignorante e fácil, pela condenação sumária, pela arrogância daqueles que pensam os outros diferente de si, que se pensam diferentes dos outros, pela estupidez, pela falta de amor e de compaixão. E formulou um desejo, do fundo do seu querer:
- Espero que Deus nunca permita que as pessoas que assim se expressaram, com tamanha frieza, rancor e desumanidade, tenham um momento de fraqueza, que nunca permita que sejam condenadas a uma pena de prisão, para que elas nunca tomem consciência de serem pessoas, para que nunca descubram como são frágeis e fracas, pois nunca conseguiriam sobreviver a tão grande prova.
 
Fernando Couto
 
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1.2.11

 

Com passadas rápidas dirige-se para a porta, vai vestindo o casaco, despede-se gritando:
- Até logo!
Da cozinha, a mulher pede-lhe para aguardar um segundo e aparece com um embrulho numa mão e um saco na outra.
- Obrigada querida, ele vai apreciar.
- É apenas um pequeno gesto sem qualquer valor se comparado com o que ele fez por nós. Dá-lhe um abraço e não te esqueças de dizer que tenho pena de não ir, mas com a Matilde doente… Não posso deixá-la sozinha. Dá-lhe saudades da mãe mas não lhe fales dos resultados médicos, não o preocupes ainda mais.
- Sim querida, mais alguma recomendação?
Não há censura na pergunta. Ele, como ela, está muito reconhecido ao António; por mais que façam será sempre nada.
- Olha, fala-lhe do negócio, das encomendas que temos tido e que esperamos ansiosos o dia em que ele ocupará, de novo, o seu lugar na fábrica.
Maldita fábrica, praguejou ele, entre dentes, enquanto batia com a porta da rua. Por ela o seu irmão viu a vida interrompida, aos 20 anos.
O António é o mais novo dos cinco irmãos mas naquela fatídica noite provou que para ser homem não é preciso ter idade mas atitude.
 
Não era a primeira vez que, noite dentro, vinham do lado da fábrica ruídos estranhos, movimento de camiões. O pai dava o alerta e todos se dirigiam para lá. A chegada tardia apenas constatava mais um roubo. A única maneira de os impedir seria surpreendê-los.
- Malditos! Sempre quero ver a cara desses gatunos quando se depararem com uma comissão de recepção!
Organizaram-se, fizeram turnos, vigiaram noite após noite. Muitas noites. Nada! Os meliantes não apareciam, dir-se-ia avisados. A família ponderava interromper a vigilância.
Foi então que, uma noite, altas horas, ouviram o trabalhar de um camião. Era o sinal que esperavam. A juventude irrequieta do António adianta-se à maturidade do irmão que o acompanha naquele turno. Puxa da arma, encosta-se à coluna junto à porta. O irmão fez-lhe sinal para se acalmar. Não podem cometer erros. Primeiro têm que verificar se é desse camião que estão à espera, se sair da estrada principal e entrar na picada que termina na fábrica, basta acender os holofotes para perceberem que não estão sozinhos. Surpreendidos e assustados fugirão.
O ruído do motor estava cada vez mais próximo, abrandou no entroncamento, virou à direita. Os faróis dirigidos ao portão da fábrica. Parou. As vozes que ouviram indicaram que saíram do camião e se dirigiam para o portão que os separa dos dois irmãos. No interior, António tentou chegar ao interruptor para ligar os holofotes. Estava muito escuro, não via nada, a ligação tardou. O portão abriu-se no mesmo instante em que as luzes se acenderam. Os assaltantes, assustados fugiram. António perseguiu o mais atrasado. Estava quase a alcançá-lo. Agarrou-lhe a camisa. O outro, quando se sentiu preso, virou-se e encostou uma arma à testa de António. O tiro que cortou o silêncio da noite, confundiu-o. Uma arma foi disparada - deveria sangrar em alguma parte do corpo. Mas não, não sentia nada. O corpo que segurava pela camisa escapou-se-lhe, caiu no chão perto de si. De pé e ainda com a arma na mão o seu irmão olhava-os com um misto de terror e alívio. Matou um homem mas o seu jovem irmão está vivo.
Abraçaram-se longamente. Muita coisa passou pela cabeça de António mas a imagem dos seus pequenos sobrinhos a crescerem com o pai ausente, recluso numa prisão, não o abandonava. Como um autómato tirou do bolso o telemóvel, ligou o 112.
- Matei um homem, venham buscar-me.
 
Aconteceu há cinco anos, a pena ainda não terminou mas António não tem medo do futuro - a família ama-o e admira-o, cuida dele. Hoje é dia de visitas, tem a certeza de poder abraçar um dos seus. A sua cunhada fez o bolo de iogurte que lhe será entregue juntamente com o saco da roupa cuidadosamente limpa e arranjada. Terá notícias de todos.
É assim desde aquela noite.
 
Cidália Carvalho
 
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25.1.11

 

“ (…) Mãe, já sei que estás magoada mas não me vires as costas. Tu não. Estou aqui fechado. Enlouqueço! Sabes bem que não sou culpado de tudo o que me acusam… Não te preocupas comigo? Não tens coração? Quando vens ver-me?”
 
A culpa foi nossa. Permitimos-te crescer impunemente. Cobrimos-te a retaguarda e, se calhar nesse gesto, deixamos-te a alma a descoberto, à mercê de um mundo que não conhecias. Protegemos-te “dos outros”, não os deixamos entrar no teu metro quadrado de oxigénio, mas não pensamos que irias procurá-los…. O teu pai encheu-se depressa. Não tolera falhas, tu sabes. Diz que lhe trouxeste problemas sérios pondo em causa o seu status. Que vergonha, o filho de um conhecido cirurgião, preso por roubo e tráfico de droga. Consumidor. Vendedor. Vil. Estou proibida de dizer o teu nome. Todos os dias, sento-me com o teu pai à mesa e sofro, sozinha, a dor da saudade que me faz carpir sem lágrimas… Não posso dizer-lhe que sinto a tua falta, sem ser duramente lembrada de todas as asneiras que fizeste. Das intenções, que nem eu sei entender… Calo o grito que se me prende na garganta.
Se calhar a culpa foi minha. Só minha. Nunca deixei de acreditar em ti. Cada vez que tinhas um ataque de nervos porque te recusávamos dinheiro, insultavas-nos, ameaçavas-nos. Roubavas-nos. Partias o que sobrava. Semanas depois, reaparecias, caías no meu colo e choravas. Pedias mil vezes desculpa, dizias-te arrependido. Eu fechava os olhos e cheirava-te como uma fêmea cheira a sua cria, com um amor transcendente e cego. Eras outra vez pequenino, o meu doce rapazinho, e tudo, tudo eu te perdoava nesse instante. Fi-lo mais vezes do que devia, mais vezes do que o teu pai imagina, ao longo dos anos. Não te poupei de nada, dei-te uma falsa sensação de segurança. Quando tentei travar-te, já era tarde.
 
No dia em que foste preso, vieste procurar-me. Já não te via desde que me tinhas agredido, quatro semanas antes. Recusei-te dinheiro, fui firme. E tu não aceitaste a minha recusa. O teu pai ficou fulo da vida quando acabei por retirar a queixa. Como, como pude perdoar um sacana que agrediu a própria mãe? Sei lá… porque o amo… porque o sinto nas entranhas… Deixei que me abraçasses. Choraste muito, juraste mais ainda. Tudo ia ser diferente, a tua vida ia mudar. Foste preso à porta de nossa casa, no momento em que entraste num carro que não era teu. Quando te vi a ser levado pela polícia, algo morreu em mim. Lembro-me de entrar na cozinha e remexer os armários. Encontrei um produto que a Esmeralda usa para matar os ratos da cave. Levei-o à boca. Estava farta de vírgulas, queria um ponto final.
Acordei, na curva de outra vírgula, no hospital. Ainda cá estou. Desiludi o teu pai pela minha “fraqueza de espírito”, sussurrou-me ele ao ouvido quando me visitou… Diz que herdaste de mim essa característica que te faz ser “reles e sem carácter”. Não tenho forças para retorquir. Não quero estar com ele. Não devo estar contigo. Como pode o amor ser, afinal, o mais temível dos carrascos?
E agora escreves-me cartas, que recebo às escondidas, pelas mãos da Esmeralda, como se fossem de um amante que devo manter na clandestinidade. O carimbo prisional relembra-me a angústia que carrego. A frustração de não poder inverter o sentido das coisas e alterar o presente. O teu. O nosso. Não sei quando irei ver-te mas não há um só dia em que não pense em ti.
 
“Mãe, não me esqueças… Não me abandones à minha sorte. Onde estás?”. Não percebes que estou aí, presa contigo?
 
Alexandra Vaz
 
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21.1.11

 

 

Nunca mais vou esquecer o dia em que a polícia veio cá a casa buscar-vos... Faz hoje 20 anos mas lembro-me como se fosse ontem. Eu era tão jovem na altura que aos meus olhos, tudo parecia normal. O entrar e sair constante de pessoas, as filas de caras estranhas à porta de casa, a confusão, o barulho, a fumarada nos quartos, o afastamento dos avós e dos vizinhos, todos os sinais que são agora tão óbvios, tudo isso para mim era perfeitamente normal. Nessa altura eu não sabia o que eram drogas ou o que era um traficante, só fiquei a perceber melhor mais tarde quando a tia me explicou, depois de eu e a mana termos ido viver com ela.
Vocês não pensaram em nós. Não vos passou pela cabeça que o que estavam a fazer poderia comprometer seriamente a vida dos vossos filhos. E comprometeu... Tudo se complicou para mim depois de vocês terem sido presos. A tia trabalhava muitas horas fora de casa e disse-me logo, assim que fomos viver com ela, que só assinou os papéis e assumiu a responsabilidade porque não queria que fossemos para uma instituição. Disse tudo isto para me explicar que teria que ser eu a tomar conta da minha irmã de 4 anos, levá-la ao infantário, dar-lhe banho, dar-lhe de comer e tudo o que ela precisasse. Eu era só um rapaz de 12 anos.
Tive que ir trabalhar. Com a ajuda de amigos, consegui arranjar um trabalho das dez da noite às duas da manhã, o que me permitiu continuar a estudar. Durante 8 anos, acordava às sete da manhã para arranjar a minha irmã, dar-lhe o pequeno-almoço e levá-la ao infantário/escola. Daí seguia para a minha escola. Ao final da tarde, ia buscá-la, fazia os trabalhos de casa com ela, dava-lhe de comer, metia-a na cama e, com a tia já em casa, saía para ir trabalhar. E foi assim que fomos sobrevivendo.
Adoro a minha irmã, mas como devem perceber não estava preparado para ser pai com aquela idade. Hoje percebo que até me safei, pois ela é uma mulher fantástica, mas poderia não ter sido assim e tive muito medo o caminho todo...
 
Quando vocês voltaram, no final daqueles anos todos, recebi-vos com muita saudade e rapidamente voltamos a ser uma família. Mãe é mãe. Pai é pai. Não é? Mas nunca vos cheguei a dizer o quanto fiquei magoado por me terem roubado a minha adolescência, por me terem obrigado a crescer daquela forma tão violenta... Vocês não pensaram em nós. E isso eu não consigo esquecer. Pensei que este sentimento passaria ao passarmos tempo juntos e com o passar dos anos, mas não, não desaparece. Continua exactamente igual. Vocês não pensaram em nós.
Lanço estas palavras de ressentimento nesta carta que não sei se algum dia vos darei a ler, agora que tudo parece pertencer ao passado, que estamos mais próximos e as coisas correm melhor, porque nem tudo é passado para mim e há momentos que estão bem presentes na minha memória.
 
Ana Gomes
 
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18.1.11

 

Era uma manhã de sol intenso e Manuel repetia os gestos de sempre. Maquinalmente, interrompia os feixes de luz que atravessavam as barras da sua cela e aguardava pelos sons vindos do exterior. Cerrava os olhos e imaginava como seria a vida do outro lado do muro. Ter espaço, vaguear pelas ruas, entrar num café e falar para desconhecidos, correr para o autocarro, sair junto ao rio e sentar-se ao sol e à brisa.
 
Vinte anos de idade. Vinte anos sem ter conhecido a liberdade. Primeiro, aquele tempo a que alguns chamam de meninice. A violência em casa e o quarto do fundo, atravessado por gritos e raios de sol. Aí aprendera o jogo matinal e solitário de se interpor entre a luz que penetrava pelo postigo e a parede, esperando, de olhos fechados, pelos sinais de vida que haveriam de chegar. Vozes das outras crianças, meninos e felizes, diferentes porque se riam.
 
Depois, o orfanato soturno e triste. O choro contido sob a violência nocturna e ignóbil. Os olhos esbugalhados aguardando a protecção dos primeiros raios de sol e o jogo de sempre. A luz reparadora no rosto, energia mínima necessária para suportar um novo dia.
 
E finalmente, bastante mais tarde do que seria de esperar, a revolta, a explosão de violência indiscriminada sobre tudo e todos os que o rodeavam.
 
Só no mundo, enfrentou o julgamento daqueles que antes foram meninos, que sorriram de felicidade ao sentirem-se amados, que viveram em quartos com grandes janelas abertas para o mundo. Pessoas que vaguearam pelas ruas e riram, sentadas ao sol e à brisa. Decidiram que Manuel representava um perigo para a sociedade e não merecia viver a liberdade que nunca chegara a conhecer.
 
Naquela manhã de sol intenso, Manuel trouxera para a cela um texto de Platão. O mito da caverna. E pensou como seria bom ser filósofo e poder escrever sobre o que se passa na cabeça dos outros.
 
José Quelhas Lima
 
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14.1.11

 

- Ah! A liberdade… É a liberdade, a normalidade e a felicidade. Há assim uns termos curiosos que soam bem em diversas línguas. Alguns deles figuram em bandeiras, outros em hinos. Para mim não passam de ilusões estéreis e cretinas.
Ninguém é livre, pelo menos no sentido mais utópico da palavra. Ninguém é normal e, muito menos, feliz. Que é isso de liberdade? Deve ser como a presunção e a água benta: cada um toma a que quer. Neste caso a que pode.
Julgo que a liberdade mais prática reside neste balanço entre o que se quer e o que se pode fazer. Ou talvez não passe daquele ditado que corta a nossa liberdade no começo da liberdade dos outros. No fundo agarramo-nos às migalhas de liberdade que outros vão deixando cair.
- Certo, meu velho, tens toda a razão. A liberdade deve estar algures entre os direitos e os deveres. Do lado dos deveres está a ditadura e do lado dos direitos a anarquia. No meio temos o quê? A democracia? E que bela liberdade nos deu esta democracia…
- Joga!
- Ninguém sai de casa sem a trancar a sete chaves. Oito horas do dia (fora as do trânsito) são para trabalhar. Depois cozinhar, jantar, arrumar, ver novela ou futebol (porque é isso que fazem as pessoas normais), falar, calar, discutir, rir, chorar e dormir para depois acordar e voltar a fechar a casa a sete chaves. Onde está a liberdade dessa gente?
- Não culpes a democracia pela tua falta de liberdade. E joga, bolas!
- Toma!
- A democracia não é para aqui chamada. É tudo uma questão de escolha. A liberdade é a possibilidade de escolheres o que queres para ti. Se podes escolher, és livre; se não podes… Bom, não és. E há também a questão da escolha acertada.
- É complicado. E aqueles que nunca acertam?
- Outros escolhem por eles. Olha para nós aqui, por exemplo. É o que te digo: a liberdade é uma ilusão. Eles julgam-se livres mas têm que arranhar oito horas por dia e segurar bem as carteiras para não ficarem sem elas. Nós só temos que esperar que o tempo passe.
- Então? Não jogas?
- Não. Guarda o baralho e apaga a vela. Ainda nos faltam dois anos e tal.
 
Joel Cunha
 
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11.1.11

 

 

Vi recentemente um filme cujo enredo resumia-se praticamente à privação da liberdade e consequentes efeitos no comportamento humano. O filme chama-se “The experiment” e apesar de ter dois bons actores não passa, no máximo, da mediania. Contudo, achei o “núcleo” interessante dado que o mesmo vai ao encontro das conclusões de muitos estudos realizados. O que esses ensaios nos dizem é que a personalidade do indivíduo em circunstâncias de reclusão muitas vezes altera-se, assim como os seus comportamentos. Assiste-se então a variadíssimos fenómenos nessas circunstâncias mas vamo-nos centrar apenas nos de desagregação (pessoal) e de agregação (principalmente social).

O meio prisional é por natureza um meio stressor. Serve fundamentalmente para “castigar” acções anti-sociais, levando à sua inibição imediata e posterior. O recluso passa a habitar uma casa com regras próprias, quer institucionais, quer culturais, tendo forçosamente de aceitar ambas, com a dificuldade de as segundas não serem explícitas como as primeiras. Ora neste sistema de dupla regra surge frequentemente a desagregação. A individualidade que nos caracteriza no dia-a-dia, traduzida na liberdade de escolha em cada situação apresentada, torna-se muito reduzida fazendo com que o outrora “eu” se torne cada vez mais num “nós”. Esta desagregação pessoal pode inclusive tomar contornos psicopatológicos, tendo a sua expressão mais visível no comportamento, que agora se torna também social. Como exemplo extremo temos os motins prisionais, em que o individual torna-se uma consciência comum, orientada também, pelo menos, por um objectivo comum.
E assim, paradoxalmente, faz-se a ponte com os mecanismos de agregação. No meio prisional a adaptação do indivíduo ao contexto requer, como vimos, a desagregação de certos traços pré-encarceramento em detrimento de outros. Existe na esmagadora maioria dos casos a necessidade implícita do estabelecimento de uma rede social, que diferentemente da rede social existente em contexto social normalizado, dá prioridade a relações onde se obtêm proveitos específicos. Estes proveitos não são apenas de índole material mas também tais como segurança ou estabilidade.
Desta dicotomia adaptativa resulta então que os mecanismos de coping do indivíduo são diariamente postos à prova num contexto de reclusão, reflectindo-se prioritariamente nos seus comportamentos e de modo mais subtil na sua personalidade. Certo, certo, é que a experiência de privação da liberdade transforma qualquer um.
 
Rui Duarte
 
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7.1.11

 

Lembro-me de que, neste período, os reclusos ficavam mais agitadas com a tal esperança de, nesse ano, poderem ir a casa passar o Natal com a família. Alguns confirmavam que lhes tinha sido concedida uma precária prolongada, regozijando de cinco preciosos dias fora dali! Outros sabiam que este, fora já aproveitado na festa de Natal da prisão, que tinha sabor a liberdade, pelo menos, quebra na rotina diária. Outros, enganavam-se, ainda na esperança de poderem ir a casa.
 
Lembro-me de sair todos os dias da prisão, enquanto eles recolhiam às celas. Afinal, para mim era apenas uma passagem de aprendizagem profissional. Para eles uma estadia. De aprendizagens também. Umas, menos boas; outras, melhores. Recordo-me da primeira vez que lá entrei.
Lembro-me sobretudo dos reclusos. Mais de uns do que de outros. Grupos de homens enfiados num espaço físico, com regras próprias, protocolos, burocracias, submundos. Homens com face diurna e face nocturna. Lembro-me de histórias de vida de homens banais, com percursos desviados, de erros cometidos. Homens com famílias, de família. Homens. Pessoas como eu, com sonhos, medos, alegrias, tristezas. Humanos.
Aprendi a face humana da prisão. Nem todos eram tão humanos assim. Também nem todos eram capazes de lidar facilmente com a prisão. Nem todos têm a mesma capacidade de se adaptar. Talvez, por isso, nem para todos a prisão seja um hotel, como por aí se diz. Para uns talvez seja o melhor que lhes aconteceu. Sim, para uns, sair em liberdade pode ser um terror. Mas, para outros, permanecer na prisão torna-se o horror. Em todos os sentidos. Físico, sexual, mental e psicológico. Percebi, sem perceber, que é como um jogo. Cuidado em quem confias, cuidado em que te metes, cuidado com quem te alias. Se tiveres sorte em cair em boa graça, talvez tudo seja mais fácil.
Fácil não será, ter saudades de casa. Ser visitado e ver a visita partir e regressar à vida normal cá de fora, enquanto lá dentro tudo, ou quase tudo te é negado. No mínimo, as vontades. Vontade de ir passar o Natal a casa, mas saber que às 18h a cela tem como destino uma longa noite. Nem sempre tranquila. Tudo isto, enquanto cá fora ainda nem a ceia de Natal começou.
 
No meu último dia de estágio tive saudades. Olhei em redor as grades com nostalgia. Os “meus” reclusos olharam-me incrédulos. “Saudades, doutora? Quem me dera ir embora”.
Pois, também eu queria ir, se estivesse na situação deles, mas não estava. Estava dentro da prisão do lado de fora da reclusão. E esses olhos jamais imaginam o que é ser recluso, ninguém imagina, mas todos falam.
Recordo-me, em particular, deste grupo (que espero já estejam em liberdade a encaminhar a vida!) com quem trabalhei. Os “meus” reclusos. Das sessões, das opiniões, das histórias, dos conflitos, da confiança estabelecida. Olho-os e olhava-os pelo nome, e não pelo número de recluso. Eram exemplos da reclusão ao vivo. Nunca os olhei pelo crime, mas sim pelas pessoas que eram. Afinal, não tão diferentes de mim no geral. Numa condição diferente, em absoluto. Via no entanto, na maioria, uma vontade de não regressar. De querer que isso não acontecesse, de pensar em meios para que a prisão não fosse, de novo, morada. Perdi-lhes o rasto. Acredito porém que, na sua maioria, a prisão já não seja uma realidade. Assim o espero. É que a prisão tem como máxima a reintegração do recluso, através da privação da liberdade. Mas, confessamos que peca por defeito. É que entrar, permanecer e sair de novo, pode ter muitos efeitos num indivíduo, mas por si só não implica reabilitação. Muitas vezes, implica o contrário.
 
É verdade que, pelo menos na sua maioria, todos merecem lá estar e serem responsabilizados pelos seus crimes. Mas, apesar de alguns reclusos ainda serem livres de espírito (alguns!), continuam amarrados. Muitos, serão sempre. Já o eram antes de pisarem aquele chão. Mas, não é fácil de todo. E se para mim um ano é muito, imaginar dez, vinte anos de prisão é demais para conceptualizar. Mas, uma realidade para alguns. Todos nós falamos, de “boca cheia”, por vezes, que fulano tal devia estar 30 ou mais anos preso, mas não temos consciência desse espaço temporal. Eu ainda não tenho 30 anos de vida! É como se toda a minha vida tivesse de resignar-se ao mesmo contexto, à mesma rotina, à privação de fazer escolhas. Será que conseguimos mesmo imaginar? Não, não conseguimos. Que estávamos a fazer há 30 anos atrás? E durante todo esse tempo? Onde fomos, o que fizemos, quem conhecemos? O que planeamos? Sim, uma vida.
A privação de liberdade, não se restringe apenas à reclusão, obviamente. Mas, a prisão talvez seja a realidade física de privação de liberdade mais próxima que a maioria de nós poderá vir a ter. Porque crimes há muitos, uns mais graves do que outros, mas nenhum de nós está imune de pisar o risco. Será que temos consciência que a liberdade, é no seguimento da saúde, amor, um dos nossos bens mais preciosos? Não, não temos. Somos adormecidos. E por isso continuamos a acreditar que 20 ou 30 anos não chegam! Desejemos antes, que essa realidade nunca nos bata à porta.
Feliz Natal, na “liberdade” das nossas vidas.
 
Cecília Pinto
 
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24.12.10

 

O carro parou. Pelos movimentos dos seus colegas de viagem percebeu que já tinham chegado ao destino. Uns segundos depois ouviu o pesado portão subir, lentamente. Fixou aquele som. O carro avançou para voltar a parar um pouco mais à frente, para a habitual verificação e troca de papéis. Recomeçou a marcha para vencer o lanço final, até ao pátio.
A porta abriu-se e a luz forte do Sol do início da tarde foi de imediato ter com ele, envolveu-o, querendo aquecê-lo.
- Regressaste a casa. Vamos lá, desce.
Ergueu-se lentamente. Doíam-lhe as entranhas, doía-lhe o corpo, sentia-se virado do avesso, como se a sonda ao sair tivesse trazido tudo agarrado a si. E aquele sabor horrível na boca. Doía-lhe o coração, doía-lhe o espírito, doía-lhe a alma.
Desceu. Rapidamente a porta do carro celular foi fechada e o guarda pegou-lhe no braço. Sentiu carinho naquela ajuda para caminhar.
- Para onde vou?
- Para já vais para a enfermaria. Depois eles lá te dirão se ficas lá, se voltas para o teu “quarto”.
 
Entrou na enfermaria e sentou-se. Mas logo o enfermeiro chamou.
- Então, foste lavar as tripas? Gostaste da experiência? Mas o que foi que te deu para comeres vidro e detergente?
António - o 643, permanecia em silêncio.
- Ao menos foste passear. O passeio é que foi curto e rápido. E deixaste-nos muito preocupados, sabes? Mas já estás de volta. Agora temos é de tratar de ti.
António pousou a cabeça entre as mãos. E perguntou para si mesmo: - Porque não me deixaram morrer?
- Para já ficas aqui na enfermaria. Vais ficar aqui ao lado, com o 317. Dás-te bem com ele?
António acenou que sim, sem separar a cabeça das mãos, sempre a olhar os joelhos. A cabeça latejava-lhe. Quase sem forças perguntou:
- E quando volto para a ala?
- Não sei. – Respondeu o enfermeiro. E continuou logo depois:
- Daqui a pouco o médico vem falar contigo, ver como estás, e depois ele decidirá.
- Não quero voltar à ala! Eles vão dar cabo de mim.
- Tens muitas dívidas, é? Tens mais dívidas que juízo.
 
António conseguiu deitar-se. Luís - o 317, fixou o olhar em António, em silêncio, desde que este passou a porta.
Estendido, António pensou no que se passara no gabinete do médico, que o observara com muita atenção e cuidado. Disse-lhe que iria ficar bem, que dali a uns quatro dias estaria em forma. Pediu-lhe que falasse com o psiquiatra, que viria na manhã seguinte. Deu-lhe um cartão com um número de telefone, gratuito, da Voz de Apoio – para ligar se quisesse falar com alguém, alguém fora do estabelecimento prisional. Talvez ligasse.
Mas para já o que o preocupava era o regresso à ala. Não tinha como pagar as dívidas e sabia o que lhe estava destinado. Iriam continuar a usá-lo, sexualmente. Sentia medo, muito medo – mas não podia exprimi-lo, não podia mostrá-lo. E sentia culpa, muita culpa, por tudo o que consigo se passava. Sentia-se um ser miserável, repugnante, merecedor de todas as sevícias. Não aguentava uma vida assim, dois anos de sofrimento, sem ninguém cá fora que fosse um objectivo, que lhe desse força para aguentar.
 
Se tivesse morrido, estaria tudo resolvido. Ou talvez não estivesse. Estava muito confuso e cada vez com mais dúvidas.
Mas não queria voltar para a ala – eles estariam à sua espera. E não fora essa a pena a que o juiz o condenara.
Se ao menos conseguisse dormir um pouco… Afinal era noite de Natal, não de morrer.
 
Fernando Couto
 
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24.10.08

 


 


Há três dias atrás o Jornal de Notícias noticiava que em Novembro de 2008 terá início, em dois estabelecimentos prisionais portugueses, um programa de intervenção terapêutica em agressores sexuais.

 

O programa, que conta com a colaboração da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, será da responsabilidade da Universidade do Minho.

 

O objectivo do programa é avaliar, acompanhar e intervir junto de reclusos condenados por crimes relacionados com agressão sexual e prevê-se que nesta primeira fase sejam 20 os reclusos envolvidos no processo terapêutico.

 

É interessante observar a complexidade destes processos, desde a história e condicionantes pessoais dos agressores, que acabam por determinar os comportamentos, à sua envolvente e comportamento em meio prisional, à sua interpretação sobre os seus próprios crimes, até à situação das vítimas, à dificuldade na obtenção da prova, e à visão que a população tem sobre a prática desses crimes.

 

Ponto interessante para reflexão é a necessidade de monitorização desses condenados, após o cumprimento da pena, mecanismo de controlo do agressor e de protecção da população e as implicações legais dessa monitorização.

 

FCC

 

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