Foto: Interesting Face – Peter Griffin
Oiço o assobio da cana que sobe. Até onde, não sei, mas não sobe o suficiente para eu ver a explosão de luzinhas e cores no limite da sua existência, denunciada por um enorme estrondo. Começa a descida. Poucos a veem, já não tem brilho e perde-se na noite escura. Na descida cruza-se com outra que sobe até ao ponto em que há de explodir e ter o mesmo fim, não sem antes, tal como a anterior, espantar quem ali acorre para ver este festival de luz e cor.
Sempre me maravilhou esta incandescência colorida. Mas não era um fascínio tranquilo o que sentia quando, de olhos postos no céu, via rebentar um e depois outro e ainda outro, até ao momento em que rebentavam todos e muitos, à uma. O céu cobria-se de fumo, o ar cheirava a pólvora e as explosões ensurdeciam-me. Apesar disso, e ainda que com medo de eventuais canas tresmalhadas levasse as mãos à cabeça numa fingida proteção, não desviava o olhar desta explosão de sensações. Soltava exclamações, elegia o efeito mais bonito e as cores mais atrativas, comparava com anos anteriores e no final, o veredito – este ano sim, valeu a pena! Afirmava.
Só, assisto agora ao barulho lá longe, seguido de um pálido clarão roubado no brilho pelos edifícios à frente da minha janela.
Mas quê, estou a queixar-me? Sou mesmo um velho ingrato, sempre a ter pena de si mesmo. É certo que as pernas já não são o que eram mas com tempo e vontade teria ido ver o fogo mais de perto. Os meus filhos insistiram para que eu fosse com eles mas com receio de os atrapalhar decidi ficar em casa. Hoje, como noutras vezes, leio-lhes no rosto a desilusão mas conformam-se e lá vão divertir-se e viver a vida. Dediquei-lhes a minha, trabalhando para que nada lhes faltasse e educando-os com afeto. É com uma alegria imensurável que colho os frutos desse investimento. Respeitam-me e é genuína a preocupação com o meu bem-estar. Sei muito bem o que querem quando, à vez e a pretexto de nada, me entram pela casa dentro e me arrancam a esta sala fria e a esta quietude a que me entrego, por preguiça ou simplesmente para não povoar de vida os dias que me restam. Levam-me até ao jardim. Sentamo-nos naquele banco onde tantas vezes fingia ler quando na verdade os vigiava para que nas suas brincadeiras nada de mal lhes acontecesse. A minha filha nunca gostou de brincar no jardim, ferrou-a uma abelha e as formigas não lhe davam sossego. Os passeios com ela são até à praia, apanhamos um pouco de sol, andamos na marginal e tomamos café na esplanada.
Conheço-os até na maneira como abrem a porta. O mais velho irrompe casa adentro, vai direito à cozinha, abre o frigorífico e reclama pela falta de alimentos. Acha que me alimento mal e traz-me sempre um miminho. Só depois vem dar- me o beijo que tão bem me sabe. O outro, bem, o outro é um caso muito especial, não gasta as palavras mas o seu olhar e os seus gestos são tão afetuosos que dispensam palavras. Ela é diferente. Entra devagar e só depois de muito suavemente encostar a porta é que me chama: Paizinho, estás em casa? Que bem que me faz ouvir aquela voz de timbre igual ao da mãe!
Amam-me! Não duvido.
Mas, quererão eles saber o que penso e ouvir a minha opinião nos momentos de tomar decisões? Reconhecer-me-ão experiência e saber aproveitável? Duvido.
Dirão que os tempos são outros e os desafios diferentes.
Não sabem que o fazem, se soubessem não quereriam fazê-lo, mas tantas vezes me empurram para um estilo de vida que não é o meu e me retiram a capacidade de deliberação escolhendo por mim e para mim o que devo fazer, comer ou vestir!
Não tenho qualquer préstimo e não sou útil a ninguém. Esta consciência de mim, dói tanto como doeu, há uns meses, o olhar de comiseração que a mulher por quem me apaixonei me devolveu no momento em que lhe declarei o meu afeto.
Lembro-me da lentidão com que me habituei à sua presença quando, todas as tardes, por imposição dos meus filhos, ela aparecia para me tratar da casa. Lembro-me da forma gradual como a sua presença se foi convertendo em desejo. Declarei-me. Lembro-me do assombro e do silêncio insultuoso.
Velho tonto! A querer viver o que já não lhe é devido.
Comecei a desistir da vida. Estou à margem.
Cidália Carvalho